Uma cidade. Nessa cidade uma praça coalhada de gente a quem
o tempo se abre e que rasga o seu caminho por entre emoções muito recentes e
estonteantes, uma revolução, a conquista da rua e da convivialidade, as causas
universais, o soutro ainda. Tribos distintas fazem destes espaços a sua casa, a
sua verdadeira casa comum. De um desses cafés vemos afastarem-se dois jovens em
direcção a um dos jardins que marcam a periferia da praça. Ela. Cabelos azeviche,
marrafa cortada em sanefa, forma de trazer a linha do horizonte ao
rés-dos-olhos. Ele. Risco ao meio em cabelos louros e longos, máquina fotográfica
dependurada dum ombro que o denuncia como um ladrão de imagens. Os passos
transportam-os a um jardim fechado numa acolhedora associação de estudantes,
onde um velho leão de bronze retirado de antiga composição escultórica vigia do
seu canto o espaço arrelvado. Ele havia proposto tirar-lhe um retrato, ela
aceitara. Ele considerara existir naquele rosto vagamente egípcio algo de
enigma, de fotograficamente urgente e tentador. Ela acolhera com bonomia a proposta.
Agora sentados na relva conversam enquanto uma pluma de fumo evola entrecortada
por pausas de inalação, cigarro cá cigarro lá, criando uma ponte entre os seus
lábios. Ele vai explicando o dispositivo cénico que entretanto imaginou. Braço
sobre a relva afastando-se do corpo, atitude de repouso e comunhão com a terra,
terra-mãe a quem ela entrega o seu rosto, ainda mais alvo pela frescura contrastante
do verde. Um cão. Que por ali deambula naturalmente inebriado pelos aromas que
as chaminés das cantinas contíguas entregam ao exterior. Enquadrar, focar: o
filtro negro necessário à captura da imagem em película de infravermelhos tudo
escurece. E o cão. Atraído pela presença humana, irrompe pelo quadro e cobre de
generosa lambedela o rosto que parece oferecer-se-lhe, forma de beijar própria
da espécie. Um sorriso que se abre no rosto deitado. Cão e fotógrafo irmanam-se
por momentos no espaço que vai do desejo ao gesto.
De resto. Não há quem dê por certo ter o cão virado príncipe.
A jovem beijada visivelmente não adormeceu, antes rescende na sua peculiar beleza.
O fotógrafo, impenitente ladrão de imagens, esse tratou de revelar a película,
fazer provas e guardar por muitos anos o que roubou e agora humildemente vem restituir.
Mensagem para o autor: Obrigada pela foto, pelas memórias e pelo texto delicioso.
Um abraço GRANDE e GRATO
Muito bem retratada ...
ResponderEliminar... mas o cão, que é mais inocente e genuíno que o ser humano, beijou primeiro. :)
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