quinta-feira, 27 de junho de 2013

Até chegar lá

Ao vivermos num estado de culpa permanente reagimos de duas formas:


a) - projectamos a culpa no outro (o que poderá dar uma aparente sensação de alívio, mas que comigo não funciona)
b) - aplicamos um auto-castigo, sabotando tudo aquilo que mais desejamos (adoecendo e tendo uma especial propensão para acidentes de vária ordem, que é o resumo da minha vida).

Impeço-me de analisar o cerne do erro e de aprender com ele. 
Quisera eu  pegar-lhe pelos colarinhos e abaná-lo até ficar nu e insignificante, mas tenho fugido de muitas formas, fugido da possibilidade de me consertar e de crescer com o que poderia aprender, embora tenha procurado de outras formas, a estabilidade na base dos meus frágeis alicerces. E procurei muito na espiritualidade...

O medo de enfrentar o que não quero ver e a impotência diante deste medo atira-me para um poço, o da culpa.

Na verdade, pelo facto de sentir que nunca fui aceite pelo que fui e sou, de perceber que não era capaz de corresponder às expectativas que esperavam de mim, de passar de fracasso em fracasso emocional, fui enfraquecendo e ficando extremamente manipulável no sector afectivo. 
Assim, tenho visto a minha liberdade  diminuir e a culpa aumentar.

Penso que, para já, o monstro nº 1 está identificado, só que ainda não sei o  que fazer. 

Estou numa sucessão de causas e efeitos incompatíveis com a felicidade.







domingo, 23 de junho de 2013

Oito semanas depois - Uma tournée e muitas viagens no tempo

Esta semana, para além das sessões que constam do programa do hospital, foi consagrada à "tournée" da Anima Tuna. As minhas colegas, juntamente com a equipa de enfermagem estagiária, fizeram concertos em várias escolas e, também,  na sala de palestras do hospital. 

Eu participei como fotógrafa da digressão.

Não conseguindo estar ligada à música desta forma, tentei não me excluir procurando um motivo útil. E que melhor senão o de registar as expressões que se abriram diante de palmas calorosas e elogios? As minhas colegas estavam felizes.

O público pequenino é muito exigente e reage espontâneamente quando a coisa não corre bem. A tuna foi um sucesso junto destas crianças que cantavam e batiam palmas com entusiasmo. 

Houve, porém, uma manhã em que eu não consegui participar. Os meninos do infantário, de chapéus amarelinhos, agarrados uns aos outros pelos bibes foram de encontro às memórias de uma infância que ainda não consigo superar. 
A Enf. C. que adora fotografia executou muito bem a reportagem.

Das muitas fotos tiradas seleccionámos 452. Destas serão escolhidas umas quantas para ilustrar estes momentos no jornal do hospital de psiquiatria. 

Aqui fica um cheirinho...




Prossegue o levantamento das portas da cidade (a menina dos meus olhos, da M. e da V.) que está em fase de revisão. 
Fomos ao terreno com as enfermeiras estagiárias para fotografar, tirar coordenadas com o GPS, visitas essas que se repetem para cumprir  o rigor que desejamos.

Uma das últimas saídas implicou um estratagema para identificarmos a localização de uma das portas que há muito não existe na zona ribeirinha. Seguindo uma iluminura de Pier Maria Baldi (séc.XVII) a M. com as enfermeiras Marlene e Catarina posicionou-se à entrada da ponte D. Luís, no sentido Tapada/Santarém.  A enf. Marlene (responsável pelo levantamento fotográfico) tirou várias fotos que centravam a cúpula da Igreja de S. João Evangelista situada no Alfange, apanhando postes de electricidade pelo caminho para depois se fazer uma linha até ao rio com um ângulo de 45º. Aí, e segundo o que a iluminura revela, estaria a porta desaparecida.

Fazia imenso calor, lembro-me bem... regressámos ao local das nossas investigações e caminhámos até chegar ao dito ponto. Mas não foi assim tão fácil. Precisámos de identificar os postes de electricidade pelo caminho, bem como alguma vegetação que se via nas fotos captadas anteriormente. Mas acreditamos que demos com a Porta das Almas, hoje um local de vegetação por cima de um muro.

Estas portas foram totalmente destruídas aquando da construção da linha de caminho de ferro, no séc.XIX, o que gerou muitos protestos por parte da população.

Aliás, nesta altura, a destruição era a palavra de ordem em nome de uma modernização que depois utilizava a pedra das muralhas e portas para calcetar as ruas ... a este propósito escreveu Alexandre Herculano:

Santarém, sendo uma das povoações do reino mais rica em monumentos, parece que por isso mesmo tem merecido mais o ódio de certa gente, que das três potências da alma, memória, entendimento, e vontade, só admite a última; e com razão: porque, para fechar e descarregar uma camartelada, é mais que suficiente.


 Por aqui foi a Porta das Almas

 Aqui ainda se vêem vestígios da Porta de Palhais

Entre o final do muro à esquerda e as árvores foi a Porta de Valada


Este trabalho, por tudo o que implica, é apaixonante. De uma bibliografia passamos para outra fonte, mais o contacto com arqueólogos e historiadores que trabalharam neste tema, mais uma ida ao núcleo museológico, mais um pedido de esclarecimento nas dúvidas que se colocam, porque somos leigos e queremos muito aprender, sobretudo fazer uma apresentação dos acontecimentos o mais rigorosa possível.

Penso que quando se conhece melhor o local onde vivemos mais respeito e admiração lhe temos, mais cuidado com a sua preservação desejamos. E eu desejo que tudo isto não se perca porque foi fruto de muito trabalho e sacrifício daqueles que a história não reza, da maioria que não tem o nome gravado em placas comemorativas, os anónimos insubstituíveis e indispensáveis na construção de um tempo.


domingo, 16 de junho de 2013

Início do caminho ou o encontro com os monstros de estimação

Durante muito tempo procurei nos outros algo que me completasse. Queria ver através dos seus olhos a avaliação que fazia de mim mesma. Erro. Coloquei qualquer possibilidade de ser feliz nas mãos que, não sendo as minhas, pouco puderam fazer. Só dependia única e exclusivamente de mim.

O que isto deu foi algo parecido com:  se for amada é porque sou boa pessoa, se não for é porque sou lixo.

E cá estou, a separar o lixo interno de culpa e julgamento acumulados, depois de anos de castigos e auto-sabotagens...

Eu sentia o meu desejo de liberdade inexplicavelmente grande e o facto de não me apegar muito a  grupos e mentores já era o início do caminho. Mas o medo dos meus monstros foi maior.

Mais cedo ou mais tarde chega a hora de nos olhar e descobrir quem verdadeiramente somos.

Não faço ideia do que vou encontrar, mas preciso de fazer a minha parte.




sexta-feira, 14 de junho de 2013

Sete semanas depois e um deus que não existe



Semana difícil. Parece que regredi. Não sinto que tenha sido abençoada pelo que tanto procurei.

No refeitório do hospital olhei com horror para o que não queria.

Tolerância ZERO para o João Moura jr. um energúmeno em crescimento.

Aguardo que a providência  o coloque fora de órbita antes que cresça demais e espero  que sofra lenta e profundamente como o vitelo que serviu de publicidade para os seus cães .

Tolerância ZERO com monstros iguais ao jogador argentino que atirou contra a bancada um pobre cão indefeso.

Tolerância ZERO com tudo o que se está a passar sobre um mundo perigosamente vulnerável onde uma grande maioria vive mal desde que o mundo foi criado.

Deus dorme descansado, sem interferir, fazendo-nos gozar do tal livre arbítrio que não serve para nada, quando o mais forte descarrega, como sempre, de forma insana e violenta.

Sabe, sr. deus, sempre que os meus filhos eram ameaçados, fosse por quem fosse, eu atirava-me de cabeça e defendia-os.
Não é isso que o vejo fazer com nenhum de seus. E o sr é perfeito, eu não.
O sr. não passou anos com depressões que o tornaram incapaz de velar pelos que ama.


Sinto que Deus não me quer, que Deus não é Deus e que ele não existe realmente - Madre Teresa de Calcutá

sábado, 8 de junho de 2013

Seis semanas depois

Depois do ciclo completo de sessões, sobre o nosso transtorno psicológico e seu tratamento, ficou-se com uma ideia da situação que cada doente enfrenta.
Não quer dizer que consigamos seguir a par e passo - e neste ponto falo exclusivamente por mim e das incapacidades ainda existentes – mas reconheço que as horas que passámos durante este mês de internamento, com o psiquiatra João da Cruz, foram importantes para confirmar que há uma psiquiatria que dialoga e explica as nossas dúvidas e temores.
Continuo a não aceitar cegamente a terapia da medicação. Acredito que no início de uma depressão sejam necessárias algumas “drogas” para os níveis de ansiedade descerem e o descanso cerebral ser reposto mas, atingido esse propósito, outras formas devem ser aplicadas na reabilitação do doente.
Não falo em cura porque, sinceramente, acho que é uma doença crónica. Falo numa “desintoxicação” de emoções negativas e falta de perspectivas de vida que podem ser revertidas. Isso a medicação não faz. Não limpa a nódoa deixada pela dor. Não arranca a raiz dos problemas e dos traumas que a causaram. Adormece-os por uns tempos, o tempo que se consegue aguentar sem dor, até novo embate por essas experiências vividas. E embora, depois destas sessões, os sintomas precoces de alerta tenham ficado mais fáceis de identificar bem como o respectivo plano de prevenção de recaídas, na minha opinião nada  impede que um novo  mergulho na escuridão depressiva suceda.

As tácticas de distracção anti-angústia não deixam de ser válidas – dar uma caminhada, ler um livro, falar com alguém, ter um hobbie – mas depende em muito do quanto ela pesa e dos fantasmas que a empurram para nos subjugar. Depende de nós e dos outros.

Eu queria enfrentar esses monstros que convivem comigo já há demasiado tempo. Perceber o porquê de tantas escolhas mal feitas, de tanto complexo de culpa, de tanto falhanço com os outros, de padrões que me levaram a repetir a credulidade de ser aceite e amada sem, no entanto, o conseguir, o porquê de não ter tido uma família, o porquê de caminhar para o precipício sem ver onde ponho os pés, o estar quase a chegar a algo feliz e tudo se desfazer, o porquê de tanta escuridão na minha busca pela luz.
Lamento que os profissionais especializados na regressão e hipnoterapia não pratiquem nos hospitais. Também isto é um negócio... e a forma de seleccionar os que podem e os que não podem, por questões monetárias, encontrar uma cura ou repetir internamentos, é profundamente injusto.
Olho para cada uma das internadas e sei que todas têm um imenso desejo de viver, uma capacidade extraordinária de amar a vida que a maioria não entende e, por isso, rotula levianamente.

Quando alguém tenta o suicídio, por exemplo, as “vozes sãs” da sociedade consideram a maior das fraquezas e cobardias. Eu não acho.
Quem ama desta forma incomensurável não encaixa a dor que lhe está proporcionalmente relacionada. São seres raros, de enorme coração, logo extraordinariamente indefesos mediante uma palavra, uma atitude, um golpe de maldade dado por outrem. Esta fragilidade é confundida, normalmente, com fraqueza e da fraqueza nasce o descrédito que se espalha sobre estes seres com tanto para dar.
Tenho testemunhado habilidades e dons que vocês, comuns mortais, nem imaginam.
A maioria das actividades são feitas em conjunto e os casos que levaram a pessoa fechar-se numa redoma de quase loucura revelam-na perspicaz e assertiva num raciocínio analítico, consciente de detalhes que mais ninguém vê mediante um enigma, sorrindo sinceramente quando tocada por algo que a faz sentir especial. Vejo isso na psicomotricidade, no relaxamento, na estimulação cognitiva, na terapia ocupacional, na participação interessada destas aulas de psicoeducação.
Eu não quero ter alta e muitas das internadas também não. Esse dia é pensado com temor. E embora haja quem sinta saudades da sua casa e dos que lhes são mais próximos, nota-se sempre um abatimento quando a novidade é dada pelos médicos.
Funcionamos numa comunidade que aí fora não existe. O conceito de interajuda é real. Dar apoio a quem se sente pior, num determinado dia, é verdadeiro. Não há falta de tempo nem sensações de impotência com o mal estar dos outros.
Os outros que estão por fora assustam-nos. Eles desconhecem os sintomas que sentimos e a forma como procuramos estratégias para os resolver. Não compreendem o esgotamento que nos toma depois de tanto tempo sob emoções encapeladas. Não vêem para além do seu extremo egoísmo por dentro da sua vida plástica. Não valem nada. Não sabem nada de nada.
E é neste preciso ponto que entra o que se designa por competências sociais e a gestão de conflitos.
Por mim mandava esta gente toda à merda porque quando me explicam que:
- reflectir
- ouvir a outra pessoa mostrando compreensão e atenção
- reduzir a hostilidade
- expor a nossa perspectivas
e por fim dar o passo para
- negociar
eu pergunto: mas não foi isso que tentei desde que nasci? Porque será que desisti de o fazer?
O psiquiatra reforça que prestar atenção ao que estamos a sentir é o passo inicial para chegar à capacidade de controlar as emoções e sentimentos ou seja, autocontrole. O nosso futuro melhorará se não agirmos por impulso.
Este instinto primordial tem a sua origem na amígdala, localizada no sistema límbico, identificadora do perigo e que, mediante as situações, nos leva a atacar ou a ser atacados.
A esta marca de sobrevivência, que se mantém desde sempre, para que não seja activada de forma automática, gerando resultados imprevisíveis, deve juntar-se o exercício de autocontrole a fim de não sermos escravos dos nossos instintos.

Existe o oposto – autocontrole excessivo – prejudicial pelo bloqueio que causa favorecendo um descontrole no futuro...

Um conflito – prossegue o psiquiatra - gera sentimentos negativos direccionados à outra pessoa levando-nos a agir de forma mais agressiva. A capacidade de reflexão dá-nos algum tempo para saber o que fazer perante as circunstâncias, mas também depende do estado de espírito em que nos encontramos.
Podemos modelar a nossa forma automática de agir, mas é verdade que não o podemos fazer em relação à forma de agir dos outros. Ao mudarmos a nossa perspectiva e expondo-a podemos chegar ao passo da “negociação”.
Os instintos são inatos. O autocontrole ou força de vontade é o que nos diferencia dos outros animais, permitindo-nos ter controle sobre os instintos:

- autocontrole 
- compromisso e negociação 
- sair de uma situação de stress
- discordar sem discutir
- responder a acusações falsas

Ao reler os apontamentos durante o intervalo concluí que não sei o que fazer com isto. Negociar o quê? O que me foi interdito e continua a ser?
Optei por me afastar de qualquer tentativa de colocar os meus pontos de vista à consideração de quem me magoou. Não sei responder a acusações falsas com autocontrole. O meu instinto diz-me para permanecer longe de quem me quer alienar.

Recorri ao meu bem amado Teixeira de Pascoaes para nunca me esquecer:
A finalidade da vida é a definição da existência. E digo finalidade, porque todo o esforço da Natureza se dirigiu e dirige num sentido humano ou consciente. O destino do homem é ser a consciência do Universo em ascensão perpétua para Deus. O homem é ele e o seu habitat. É céu e terra contidos numa definição espiritual ou consciente. O homem, sonhando, transborda de si mesmo, amplia o mundo, porque ilumina as suas dimensões desconhecidas. O sonho é alta temperatura, um estado térmico da alma, a sua incandescência. O absoluto é dos poetas e o relativo é da ciência. O sábio observa, analisa, decompõe; o filósofo generaliza, dá o conjunto; o poeta dá o significado anímico das coisas, a sua própria natureza. A essência das coisas, essa verdade oculta na mentira, é de natureza poética e não científica. Aparece ao luar da inspiração e não à claridade fria da razão “
É disto que se trata no nosso mundo invisível, entre as paredes de um hospital psiquiátrico, de um quarto onde ninguém entra, da nossa cabeça.  
Mostramo-lo à nossa maneira.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Dor crónica

Pensar no perdão é impensável, apagar o que me feriu é impossível.

O passado não ficou no seu devido lugar.

Não consigo viver o presente, não consigo libertar-me. 

A dor roubou-me o futuro.





sábado, 1 de junho de 2013

Cinco semanas depois

Competências Sociais ou a importância de nos relacionarmos com os outros.


Este tema pareceu-me muito complexo e difícil.
Com o desgaste gerado por uma comunicação deficitária desde a minha infância e adolescência (nunca se conversava na família. Os tons irritado do meu pai e recriminatório da minha mãe, empurravam-nos directamente para a discussão) e pelas desilusões pessoais posteriores, coloca-se a dúvida sobre esta incompetência comunicativa se ter tornado num traço do meu carácter e se, com o treino que se pretende com estas sessões,  é possível atingir o que sempre foi tão inacessível: sentir-me melhor na coexistência com os outros.
Segundo o psiquiatra, a gestão de conflitos proporciona satisfação no relacionamento social sem a interferência de mágoas, ansiedade e a costumada frustração de não compreendermos nem sermos compreendidos.
Ora isso já eu imaginava. Soa bem.
Como reagimos perante um conflito?
a) – afastamo-nos da discussão
b) – respondemos na mesma moeda (entrando na discussão com agressividade)
c) – ignoramos a discussão

Eu fui muito b) e passei para  a)
Mas não me sinto bem em nenhuma das formas
Ignorar também não consigo. Fica tudo registado, o que me provoca muita ansiedade e ressentimento.
Perguntei se isto, a falta de jeito para falarmos com os outros num momento crítico, é uma desvantagem química ou algo mais.

O psiquiatra explicou:


O stress não altera os genes, mas contribui para a vulnerabilidade... pode desorganizar a parte química do cérebro.


E depois acrescentou: 
Com o tempo vão-se perdendo capacidades na organização do pensamento, à conta dos surtos e crises.

Então é isto? Somos um mundo químico? A inteligência, a filosofia, a poesia, a arte, Epicuro, Confúcio, Einstein, Sartre, Sophia, Eça, Baush, Mozart, exprimiram-se por um consentimento  químico?
Como explicamos o medo e as emoções? Como podemos colocar dúvidas e estimular a arte de pensar?

Não estou nada sossegada  quanto ao assunto, e menos ainda por imaginar que o meu cérebro químico, de tão danificado estar, pode não "querer" evoluir para  coexistir com o resto.

E sendo assim, "mesmo a calhar", esta semana vivi um episódio no âmbito deste assunto:
Cortei com uma pessoa (a única que me mantinha ligada à área profissional) que me decepcionou muitíssimo. Alguém, de quem esperei, ao longo deste mês de internamento, uma maior compreensão sobre a minha miséria interior e não provocasse uma situação de maior vulnerabilidade.
Outro "marco" no meu caminho de perdas, outra ferida que precisa de sarar.

Agora sei que o meu retorno à música, já muito remoto, não se fará.
Esgotaram-se as hipóteses de confiança naquela parte da "máquina" que me organizava a vida  para eu poder ser o que era. E isto é tudo tão estúpido. Porque se magoa uma pessoa que está doente?

Sei que sou demasiado sensível. Sei que não possuo  um escudo emocional. Quando sou ofendida fico com a minha vida estragada. Sinto-me numa prisão de medo. Vivo com uma tonelada de culpa. Sinto dor física pelos que vivem maltratados. As memórias perturbam-me. O pânico e não aceitação da morte torturam cada dia que vivo.

Onde está a parte química do meu "disco rígido" para deletar?


Houve uma saída a Lisboa com o grupo de internadas, terapeutas e médicos. Não fui por falta de entusiasmo. Lisboa ainda permanece confusa para as minhas possibilidades de orientação e a ideia de visitar ao Pavilhão do Conhecimento não me entusiasmou. Iria chocar com as visitas que eu programava com os meus filhos e todas as memórias de quem teve alguma coisa e agora não tem nada. Preferi ficar com os meus livros e rever o trabalho que estou  a desenvolver com a M., V., P. e R. sobre  a história da cidade.

Já andámos pelo terreno para realizar o levantamento das coordenadas, que vão sinalizar com precisão o que vai ficar no mapa, bem como o registo fotográfico dos locais. Passámos a contar com o apoio da câmara municipal para a sua elaboração, e o projecto foi bem acolhido quando se transmitiu a vontade  de se criar uma parceria.

Quem vier de futuro ficará a saber onde se situam as 14 portas da cidade, os bairros mouro e judeu, assim como os seus templos de culto.

A equipa de enfermagem e de terapeutas tem sido incansável e muito organizada. No meio de tantas actividades diárias há sempre o cuidado de nos proporcionar o tempo que necessitamos para trabalhar no projecto.

O jornal trimestral editado pelo serviço de psiquiatria foi-me dado para paginar e modificar gráficamente. Assim, enquanto os ensaios da tuna se vão realizando ficarei resguardada, mas a produzir uma coisa que me dá prazer.
Vontade de cantar - 0

Ontem tive um momento feliz. 
Voltei à ASPA com uma voluntária que me pediu para a ajudar. 
O caso é o de um gatinho bebé, abandonado no Cartaxo e que a APAAC (Associação de Proteção dos Animais Abandonados do Cartaxo) vergonhosamente não quis recolher, que precisa de ser amamentado. Todos os voluntários se têm revezado para o fazer.

Eu sei que quem me ajudou foi a voluntária. Intuiu que aos poucos e no meu rítmo posso colaborar. E estou-lhe muito grata por isso.

Aquele corpinho minúsculo embrulhado no meu colo abraçava o biberão com as duas patinhas a mamar sofregamente. Depois, já saciado da fome, começou a querer brincar. Deu uns passinhos desajeitados, esticou as patinhas de encontro os meus dedos que corriam à volta dele para lhe fazer cócegas e mimos. Limpei-o com um toalhete como as mães gatas fazem com a língua. Senti-lhe o ronronron junto ao meu peito.  
Meu pequenino lindo, quero-te muito. E estás no lugar certo.  
A boxe dele tem uma bela caminha amarela, brinquedos, a caixinha de areia que ele utiliza muito afoito, a tacinha de água, e ainda sobra muito espaço para explorar a sua curiosidade de bebé.

Eu sei que vai ser muito feliz. 
Ter sido rejeitado não lhe vai diminuir a confiança para viver com um humano. Ele saberá gerir qualquer conflito futuro...


Eu e Davi, numa foto recente. 
Este gatinho tão maltratado que foi, também é um exemplo de sucesso na gestão de conflitos.
O que ainda há para aprender com eles é tanto...