segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Bolha de Sabão



A fase introvertida dos dias deu lugar à participação. Uma nova vida chamou por todos e todos quiseram estar no epicentro dos acontecimentos por motivos diferentes. Hastearam-se bandeiras, exacerbaram-se coisas não tão importantes, mas que o eram, seguiram-se à risca estatutos de stencil, apagaram-se pessoas que faziam parte dos afectos, mas não das cores envergadas. No caos dos corredores ensaiaram-se lutas saídas da banda desenhada, noites de vigília, palavras na rua, cordões de segurança, sustos de morte, salas magnas, campos de batalha, ambições à espera, ideais com urgência. Tempos que uns quantos podem lembrar, não todos, porque pelo caminho ficou-lhes a verdade. A verdade dos justos, essa, perpetua e inspira a mudança seja em que espiral do tempo for. Os muros inventados para dividir ideias desabaram. Então e depois. A verdade veio à superfície como óleo derramado, uma imensa mancha de cruezas e humilhações alastra e impregna-se em todas as cidades do mundo.


O luto da América Latina…

Víctor Jara cantou antes de ficar sem mãos - Somos cinco mil aquí en esta pequeña parte la ciudad. Somos cinco mil.¿Cuántos somos en total en las ciudades y en todo el país? (16 de Setembro de 1973)

Dentro da bolha de sabão o mundo testemunha a carnificina. Não se atreveu a deixar de ser uma bolha, embora persista na rotação da dor e se lembre dos retratos na moldura. Não é um sofrimento breve, mas uma consciência que se duplica nas teias do pranto. Frente ao espelho, sem reflexo, quem se esqueceu?

108 checos e eslovacos mortos + 300 000 exilados e refugiados;
200 000 bósnios mortos + 1 326 000 refugiados e exilados;
2 600 chineses mortos na Praça da Paz Celestial + 7000 a 10 000 feridos e um sem número de presos;
30 000 argentinos “desaparecidos” das Mães da Praça de Maio;
450 000 em Darfur;
100 000 no Iraque;
2.000 00 no Vietnam…
 
O cortejo de algarismos não cessa, incontrolável monstro, maior que todos os dragões das lendas, o céu e a terra sob o seu cuspo de fogo, incompreensível o rasto raiado de riscos falsos no mapa.


Pero tú no sufriste? Yo no sofrí. Yo sufro sólo los sufrimientos de mi pueblo. Yo vivo adentro, adentro de mi patria, célula de su infinita y abrasada sangre. No tiengo tempo para mis dolores (Pablo Neruda, 1949)

O grito inerte já se transformou em vento amaldiçoado que atravessa o que foi agora. A que distância estamos da dor?


Canto, qué mal me sabes cuando tengo que cantar espanto. Espanto como el que vivo como el que muero, espanto. De verme entre tantos y tantos momentos de infinito en que el silencio y el grito son las metas de este canto. (Víctor Jara, 16 de Setembro de 1973)


O canto tem fendas de onde os fantasmas partem. Tem alfabetos que doem sob as línguas. O que dele fica é tudo o que pedimos para ser.


Le pido al Señor, durante toda la semana mientras voy recogiendo el clamor del pueblo y el dolor de tanto crimen, la ignominia de tanta violencia, que me dé la palabra oportuna para consolar, para denunciar, para llamar al arrepentimiento (excerto da Homilia de Monsenhor Oscar Romero, 23 de Março de 1980. Foi assassinado, no dia seguinte, enquanto celebrava a Eucaristia)

*
Solo le Pido a Dios, Mercedes Sosa (Mercedes Sosa en Argentina, 1982)

1 comentário:

  1. Que poder é este vestido de instrumentos de tortura,que vence ideais nobres,que dissuade quem se atreve? Terá atributos sobrenaturais?? Só dessa forma conseguirei entender o porquê da sua invencibilidade.É que tendo rosto humano,não compreendo.E tem.E não me conformo.
    E quero rebentar a bola de sabão JÁ!!!
    Correr e abraçar as vozes esquartejadas.Dizer livre o quão me orgulho delas.E ai a falta que nos fazem...

    Já não há heroís.
    A estória,agora é outra.

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