sábado, 30 de janeiro de 2010

Observar Borboletas



Eu - Que comboio é este?
Um - Não sou de cá, não posso dizer.
Outro - Correu por aí que vai para longe para uma paisagem desconhecida.
Um - Vai? Onde posso arranjar os horários? Nunca se sabe quando volta a passar outro...
Outro - Eu soube por acaso, se bem que não acredite muito nisso, no acaso…
Eu - Daria para chegar a tempo?
Um - A tempo de quê?
Outro - De ser feliz, talvez...
Eu - Preciso de o apanhar… mesmo que pare em todas as estações e apeadeiros.
Outro - Achas que deves arriscar? Afinal não sabemos o horário e se chega mesmo a ir!
Um - Isso ninguém sabe, mas é melhor acreditar que vai chegar ao sítio certo.
Outro - Eu não conheço nenhum sítio que seja certo.
Eu - Vou arriscar! Entre o que sobra da vida e o desterro há-de haver um lugar onde eu caiba.
Outro - E nesse sítio tens algum encontro marcado?
Um - Os sem carácter estão em todos os sítios...
Eu - É.... a minha avó dizia o mesmo.
Um - E valerá a pena?
Eu - Estou atrasada... não sei se tenho tempo para pensar na resposta.
Outro - Que não seja por isso! Podes dizer enquanto te acompanho. Exactamente para onde?
Eu - Não sei... ainda...
Um - Que tempos estes... as pessoas andam sem direcção, não se conhecem, e marcam encontros indecisos.
Eu - Se apanhar este comboio acho que não volto.
Outro - Assim não posso ir contigo.
Eu - Porquê?
Outro - Porque tenho a certeza que não vai chegar onde queres.
Eu - Ou porque estás com medo...
Um - Ele não costuma ser assim tão irónico, a não ser que esteja a arrumar o sótão...
Eu - Talvez intua e esteja certo. Deitar fora e limpar, ao invés de escolher e guardar é hilariante!
Outro - Evito perder-me, é isso.
Eu - Sim, é muito cansativo...
Um - Se é....
Outro - O que é verdade é que há outros comboios.
Eu - Pois há, mas vão esgotados de conversas que não querem sair.
Um - Tu, a declamar a certeza absoluta.
Outro - É por isso que levas essa máquina fotográfica e o caderno preto na mão?
Eu - Sim, porque nunca tenho a certeza de nada.

Enquanto espero, já depois de Um e de Outro terem seguido para a Travessa dos Narcisos, sento-me no chão e abro a caixa. A minha viola está sonolenta e eu penso que a música um dia pode acabar. Os músicos podem deixar de o ser e fazer outras coisas como, por exemplo, observar borboletas enquanto estas não se extinguirem. Donde veio esta certeza? Acho que foi no guichet, ao comprar o bilhete, a senhora que me atendeu muito vagarosa, muito ausente, não sabia do som das suas asas. Perguntei: o que fez a música por si? Ela permaneceu igual, eu afligi-me e saí a correr. Sentei-me no chão, abri a caixa da viola e olhei-a com vontade de a acordar. Quis abraçá-la apesar de saber que era uma tentativa desastrada. Olhei para o fim da linha e toquei um Sol.

Música: Stargazer – Siouxsie (The Rapture, 1995)

Dia de Sven

*“Viemos vê-lo, não só como líder do Povo Sueco, e Homem de estado de projecção Internacional, mas também como um de nós, um companheiro combatente da liberdade que deu um inestimável contributo para a luta de emancipação da África do Sul.
Do Vietname à Nicarágua, de El Salvador à Palestina, do Saara à África do Sul, por todo o lado, bandeiras a meia haste em memória deste gigante da justiça que se tornou cidadão do mundo, um irmão e um companheiro de todos os oprimidos.”
(Mensagem de condolências de Oliver Tambo, presidente do ANC)

*“Vós sois a geração que pode dar passos gigantescos no desenvolvimento duma sociedade pacificada. Consegui-lo-eis se usardes as novas tecnologias e o imenso conhecimento de que hoje dispomos, para aprender a desenvolverem-se em vós próprios em diálogo, compreensão, camaradagem e amor.”
(Junho de 1984 no congresso da Juventude Social Democrata)

*“Sabemos que a ideologia da raça não é sustentada por factos ou diferenças de natureza humana, mas por realidades e interesses de natureza económica. O apartheid defende privilégios sociais e só persiste porque recebe ajuda de fora da África do Sul. É um sistema, repugnante que traz instabilidade à comunidade internacional e não tem futuro.”
(Excerto do discurso que fez no Parlamento Sueco, uma semana antes de ser assassinado - 28 de Fevereiro de 1986)

*citações do artigo Olof Palme de José Barradas in Biosofia (Junho de 2000)


Música : Hedningarna, Viima

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A viola itinerante



Fotos de Paulo Braula Reis

Por esta altura, era o ano de 1978, tinha decidido deixar Coimbra. A grande utopia era o mundo ser a minha casa e eu ser do mundo. Para trás ficavam pequenas estórias de uma miúda, que aos 10 anos teve a sua 1ª guitarra e cantava em forma de duo com a amiguinha da escola, Anabela Tavares e que atravessou os melhores anos do 25 de Abril (de 1974 a 1978) com a Brigada Victor Jara fundada juntamente com os amigos Jorge Gouveia Monteiro, Jorge Seabra e Rosa Lameiras - neste ponto houve sempre alguma discordância cronológica por parte de alguns membros (posteriores), que ao festejarem os anos de Brigada se "esquecem" de convidar quem dela foi semente.... Recordo com muita saudade e por uma questão de honra: o Zé Maria Almeida, músico fenomenal (e que connosco há-de correr os comícios e sessões durante a campanha eleitoral de 1976), o Jorge Santos (voz soberba) e tempos depois, finais de 76, a entrada do Jorge Ferreira (um extraordinário acordeonista) o Joaquim Caixeiro (famoso pelo seu humor, voz e ritmo) a Ananda Fernandes* (minha colega de liceu) e o Amílcar.
Mas, como dizia, a miúda fez-se ao mundo porque estava na sua essência ser uma inconformada e partir à descoberta de outras rotas.
Haverá mais estória!
* Depois da Anabela ter ido para outro liceu juntava-me, ocasionalmente, à Ananda que tocava viola e era uma expert em Joan Baez. Gostávamos de cantar a duas vozes, ela soprano, eu contralto e soava muito bem. Assim, nem pensei duas vezes em a convidar para a Brigada porque as polifonias ficavam mais enriquecidas com outra voz feminina e de cristal, como a dela :)

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Dia de Angela


But at the same time you can't assume that making a difference 20 years ago is going to allow you to sort of live on the laurels of those victories for the rest of your life.


sábado, 23 de janeiro de 2010

O Grifo e a Lebre


Mantém sempre a pose. É de rapina, mas canta como o melro. Assim poderá chegar mais perto. Elas são lerdas embora um pouco rápidas a fugir e até se darem conta das garras implacáveis, quando já é tarde de mais, ficam amochadas naquele mastigar nervoso sem pensar em nada a não ser muito de vez em quando em outonos de cristal.

Vai divagando o olhar em torno dela, isso é sedução (pensa), fá-la-à reclinar-se,(tem a certeza) desmaiar de amor (touché!) e na curva sem fim do seu voo picado vai enlaçá-la como uma serpente nunca esquecendo que é um Grifo. Tem de a atacar com precisão e sem misericórdia. Os Grifos não hesitam, nunca se comovem, exímios predadores sob penas sedosas. É matar, mas com paixão, claro. Se o fizerem com instinto cirúrgico, não se darão conta do pranto sonâmbulo que os incomoda.

E o Grifo depois da instrução faz-se à caça. Suspenso no ar ascendente, asas arqueadas, voa em círculo pelas encostas. Avista a Lebre no lusco-fusco acabada de sair do seu abrigo. A camuflagem um pouco ineficiente, ela meio distraída, ainda noviça, apetecível, analisa o Grifo, condições ideais para avançar, decide com o olhar experiente. 

Num voo lento cerca-a e  o rumor suave das suas asas desperta a atenção da Lebre. Surte o efeito que ele já esperava. Aos sinais de alerta  juntam-se luzinhas de fascinação e a Lebre espantada acha que nunca viu nada igual. O coração a mil diz "toca", a cabeça a cem grita "foge". O Grifo estende o pescoço e dirige-se-lhe colocando a voz no registo certo:

Boa noite Lebre. Sinto-me atraído por ti.

O silêncio da Lebre fá-lo pensar, por uma fracção de segundos, que ia ter algum trabalho. Reviu o curso intensivo de Roger Vailland e insiste:

Não digas nada, sente como eu sinto – dá dois passos em frente, e antes que ela atinja os seus gloriosos 72 km por hora retoma o seu dom palavroso.

Eu queria que te sentisses possuída por felicidade e amada em contentamento. Eu sei que a vida é assim, cheia de falhas, de momentos em que se odeia o amor. Sou um Grifo, não o nego, a minha existência é um desassossego porque vivo num contexto de vida e morte, mas quando olhares para mim não vejas a imagem encarnada, com rabo comprido, pés de bode, um par de cornos e olhos flamejantes. Sou um Grifo e é o que basta. Um Grifo que procura a Lebre certa. Não nego que tu despertas o que de mais turbulento e anárquico existe na minha libido… e esta época é muito má para mim, a primavera... coup de foudre, sabes o que é? Achas má ideia telefonar-te antes de adormeceres? – fez um som parecido com uma corda de violino mal pisada e aguardou muito confiante.

¥ġŭάϑ бдфϕ Ϡ ράΐψώᾗ ᾼйзж *őΐΥθΰξϰђἳ •† † † †• - declara a Lebre

Um pouco desconsertado com estes símbolos que não sabe ler, arrisca:

Tu tens um verão antecipado cheio de sol quente e luminoso e eu seco com falta de tudo. É o que é… estou para aqui a depenar-me como nunca o fiz, chama-me maluco então... mas não acreditas que à primeira vista se pode reconhecer um pedaço de nós? Não me dizes o que achas, se é boa ou má ideia telefonar-te … gostava de saber do teu perfume almiscarado … dos medos que te rondam …Gostava de fazer parte do teu destino.

A Lebre ainda no estado toca-e-foge esforça-se por recuperar algum discernimento linguístico, porque não há coisa pior do que os encontros equivocados em jeito de dialectos indecifráveis. Suspirou e com os olhos abertos para o escuro que tinha caído, pensa:

Ando por esta serra há pouco tempo. Lá longe onde acaba o escuro vejo as luzes das povoações, chão de estrelas como se tivessem caído todas do céu. Ele fala como quisesse ser eu, como se acrescentasse o que não vem de mim. Que sabe ele do espaço que me sufoca entre a espada e a alma? Vive no cio farpado a pensar que é um ritual de solstícios e eu não tenho garras sob penas.

Ela vai querer ir ao cume – inflamou-se o ignorante Grifo pensante - está quase... quase... e eu levo-a, claro, porque o destino não tem moral!

*
Música: António Variações – Canção do Engate ( Dar e Receber, 1984)

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Aroma de chocolate

Rasga-me durante a noite a insónia enrolada, a falta da palavra e do repouso celebrado num abraço. Os sonhos abrem e fecham janelas, empurram vidas que se limitam suspensas. Esquecer é desabitar a beleza que foi dita, as palavras a arder, a metade da cama despenteada, as baleias da ilha. O teu nome é fera e cilício, licor e espuma, é esta caixa com aroma de chocolate. E eu, semidestroçado no labirinto farpado e nocturno, aguardo pela celebração de espinhos e astros como um saltimbanco a boiar no fundo do mar.

Mark Ryden - Weeping

Where is My Love?


segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Dia de Lourdes



As mulheres «devem insurgir-se contra a globalização selvagem e derrotar a hegemonia económica global, que só tem trazido maiores desigualdades».


«É necessário que cada mulher realize a sua vocação de mulher assim como que todas as mulheres sejam uma presença e convite aos valores autenticamente femininos»


«A cultura feminina da preocupação e da cooperação e do suporte mutuo é necessária para estabelecer pontes entre grupos étnicos, para acelerar a formação das nações»


in cuidar o futuro

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Dia de Martin Luther King Jr.

I have a dream that one day every valley shall be exalted, and every hill and mountain shall be made low, the rough places will be made plain, and the crooked places will be made straight; "and the glory of the Lord shall be revealed and all flesh shall see it together."

Topázios Oblíquos


Foto da loba Morena
 
Lembras-te morena do nevoeiro cerrado que se erguia do Sabor e nós os dois escondidos nos lameiros? Ficávamos com os ossos gelados, o hálito de neve, à procura de um refúgio de trevos. Havia alturas em que o feno era um colchão tranquilo, quando o tempo do calor se amotinava, os bois teimosos, as vacas sem vontade, o amarelo sobre os pousios de cereais e eu, guerreiro e irresoluto, a exibir-me, e tu a dormir na colina, mas essas eram alturas em que a gente procurava o que quisesse no coração, desapeados de fome.
As distâncias desafiavam-nos através dos montes e dos bosques, aguardavam impacientes, desenhavam trilhos silenciosos, precisavam de ti e de mim com urgência, faziam arruaças a peito descoberto, evocavam horizontes e céus para a grande corrida. Viver era uma febre. Só os elementos entendiam a nossa infância e a luz real dos teus olhos. Os teus olhos, morena, por eles me tornei essência e infinito. O meu reino de onor e rocha não ficou isento ao acaso. Tu e eu fundidos na carne frágil. Risos e choros, silêncios e vozes de oração pelos caminhos assombrosos do meu reino. Também teu.
Apesar dos fogos insensatos que nos cercaram fomos reais no corredor da poesia. A nossa estória não se fez no abstracto, teve alegrias e suplícios, alvoroços e sequelas e, como nos poemas, girou à volta de destinos travados. O teu e o meu em um só. Vimos nascer luas irreais, sentimos no corpo a chuva desasossegada, acendemos o ar nocturno com o teu olhar incandescente, perseguimos na garupa da minha força o corço inconstante. Depois distraías-te no meio dos sardoais, mas eu não me importava. Continuava na corrida enquanto descobrias novas fragrâncias nas estevas e cravinas. Dizias que preferias esse lirismo a ter de passar por armadilhas. Quantas vezes o veneno e a matança. E o silêncio a ganhar vantagem sobre os nossos pedaços. Dizias que estávamos a perder o jeito de amanhecer e os teus olhos de topázio ficaram turvos. Fomos sobrando entre pegadas fundas na lama e ramos que nos murmuravam sons agoirentos. Eu olhava para o chão com medo de te perder. Tu fixavas os tartaranhões azuis que lembravam a eternidade percorrida.
Deste lado do cercado farejo as brisas onde te deixaste. Vigio auroras e crepúsculos, não vás precisar de mim. Oiço os teus movimentos voltear a chegada, mas o azul ainda é longe. Sinto-te pela voz que ecoa como restos de estrelas a riscar a noite escura. Às vezes penso que são os teus olhos de topázio a descer as serranias ao encontro da minha impaciência, como nas faroladas que perseguiam o nosso cansaço. Hoje sinto-me enfastiado de tanto breu. Os caminhos de volta foram apagados e o tempo esqueceu-se da minha saudade. Se eu fechar os olhos, as asas dos tartaranhões levam-me pelas arribas. Sabor índigo, lameiros de cinza, dois topázios oblíquos, uma alcateia, o céu contigo.


Morena e Sândalo vieram de Montezinho para o CRLI. Sândalo, o líder nato e muito assertivo para com os membros da alcateia, passava todo o tempo com a sua companheira fazendo rondas pelo cercado. Verificava vezes sem conta as possíveis falhas na vedação. Morena, vigorosa e muito resistente era muito feliz na companhia de Sândalo. Um dia, por questões de saúde, teve de ser retirada da alcateia e colocada noutro cercado. O uivo de ambos tornou-se profundo e longo. Inconsolável.


*
Música : Todo Este Céu, Fausto (Crónicas da Terra Ardente, 1994)




Grupo Lobo
Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa
Bloco C2
1749-016 Lisboa
Telefone e Fax: (+351) 217 500 073
E-mail: globo@fc.ul.pt
Página da Internet: lobo.fc.ul.pt

CRLI
Quinta da Murta Apartado 61 - Gradil
2669-909 MALVEIRA
Distrito: Lisboa
Concelho: Mafra
Telefone: 261785037
Fax:261788047

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O meu lugar

Pintura de Evelina Oliveira

Como se explica que somos de um lugar? É como a fé que se sente e não tem vocabulário que a descreva, como andar às voltas, mudar de casas e de terras e espalhar partes do bragal sem sentir nenhum dano porque o maior é não ser de lado nenhum. Vai-se escolhendo por onde ir e mesmo que demore a ser encontrado sabemos que nos aguarda. Assim como se teve um abrigo uterino, assim há um lugar onde se possa continuar a ser. Porque é que um rio se entorna no nosso olhar? De que forma o cheiro doce das árvores da avenida fica essência no corpo? Quando é que sorrir para a luz e para o negro, porque as coisas que vemos assim nos inspiram, é geometria da ternura?


Pode ser-se feliz e tanto bastando um lugar onde somos tudo e ele nosso, porque sim.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Ritmo da Paz

Campanha que apela a atenção da comunidade internacional numa esforço pela paz no Sudão. A 9 de Janeiro de 2011 haverá um referendo sobre a divisão deste país. Sudan 365 tem a participação de Stewart Copeland, Nick Mason, Phil Selway, Yehia Khalil, Mohammed Munir, Mustapha Tettey Addy, entre outros artistas.



sábado, 9 de janeiro de 2010

Memorando

Ilustração de Carla Sonheim
 
 
O jardim lá de casa era o mundo. E o mundo era tudo o que tinha. Pés descalços, minas de água, correrias desenfreadas, espionagem na copa das árvores, tendas de mantas, uma coruja a piar, uma lanterna acesa, a bola de basquete do irmão, o cão que era mesmo parecido com o Tim dos Famosos Cinco, limoeiros sumarentos, o rimel escondido da irmã, os cabelos suados para desespero das tranças, camélias em braçadas para as jarras, as fogueiras dos santos populares, o aroma permanente das violetas predilectas da mãe, o paraquedas de seda a fugir do pai, os montes sob relâmpagos, os caracóis que pernoitavam no quarto para não se molharem, a mala dos primeiros socorros porque um dia vou ser veterinária, a Adelaide com estórias de almas penadas de Sernancelhe, os paninhos de flanela com vick vaporub às primeiras tosses, o cabelo curto da mãe a ser escovado, o cabelo longo da filha sob a tortura do pente, a ovelhinha que veio da quinta e que não se matou e passou a Joaninha, as ameixas a caírem de gordas, os torneios de caricas no corredor do pátio, as músicas da Françoise Hardy, os olhares lânguidos da irmã, os passarinhos acolhidos no quarto para a cura de asas partidas, os bolos de azeite da avó Júlia, os desacordos do pai e do tio sobre o Estado Novo, a retórica final do avó Acácio quanto a Salazar, a banda de rock dos primos do Porto, as gemadas ao lanche para fortalecer, os cabelos leoninos da avó Rosa, os recados à mercearia do Sr. Canas, os pic-nics de Verão no Soito Pereiro, a caixa do Presépio com 50 figurinhas, as idas ao sótão à procura de tesouros, o pó de arroz da tia Guilhermina, o Tim que ainda não colaborava no que se lhe pedia, o cheiro da consoada de Natal, o calor de Julho em Coimbra, as almoçaradas no moinho do Pêgo Negro, as conversas em voz baixa na sala de visitas, os bigodes imponentes do bisavô Abel muitas vezes confundido com o rei D. Carlos, as tertúlias à volta da mesa de camilha, as férias contrariadas na Figueira da Foz, o peru que foi salvo a tempo de saltar para o forno, os aerogramas triste vindos do Negage, o desejo de ter asas do tamanho do céu, o sorriso doce da tia Zira, as cantorias de cima do banco, os charutos cubanos do primo Osvaldo, as viagens intermináveis para Riodades, a procissão da Nossa Senhora da Alegria, as mini-saias censuradas das primas, os homens a pisar uvas ao som da concertina, os metros de renda no alpendre, as madrinhas de guerra esperançadas, os crescidos a dançar o twist, os pequenos a conjugar o verbo ir, o terço rezado na capela às seis da tarde, o cheiro das águas termais na roupa da tia Amelita, o tacho preto das batatas assadas, a viagem de caleche da bisavó Olinda entre Ourém e S. João da Pesqueira, a minhas redacções com a letra fora das linhas, os amores de perdição do tio Adalberto, a gravidez de ar da D. Glorinha, os treze filhos de verdade da pobre Adozinda, as sestas contrariadas nos risos de vingança, o cheiro dos tonéis no lagar, os chapéus cinematográficos do tio Artur, o quarto cor-de-rosa destinado ao filho preferido, os saraus musicais que enchiam a casa, as minhas dores de crescimento, as ondas gigantes da Figueira da Foz, as papinhas de linhaça do Dr. Arruda para qualquer maleita, os sofás verdes da sala sem audiência, o desgosto da Adelaide-madrinha-de-guerra quando o Constantino morreu, a franja cortada torta, a nova vizinha da mesma idade, as treze bonecas abraçadas à cabeceira da cama, o medo escondido de adormecer, as orações ao anjo da guarda, a vontade de fugir com os ciganos, o antigo galinheiro remodelado para meu refúgio, os sapatos de verniz apertados, a falta de espaço para os meus sonhos, as calças à boca-de-sino, a primeira guitarra, a rebeldia contida, o casulo vazio, a vista para o jardim. O meu mundo que tinha tudo para mim.
 
*
Música – Primeiro dia, Sérgio Godinho (pano-cru, 1978)

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1900

Em conversa com um amigo,à hora do café falou-se do 1900 de Bernardo Bertolucci e nenhum dos dois se conseguiu lembrar do nome dos actores. Fiquei em pânico ao verificar que apesar de ser um dos meus filmes eleitos de sempre, a memória decidiu pregar uma rasteira...
Robert De Niro, Gérard Depardieu, Burt Lencaster, Donald Sutherland,todos, todos IMENSOS.

1976, no cinema Gil Vivente, em Coimbra. Hoje em forma de tributo.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Dia de Joana D'Arc

Renée Jeanne Falconetti no filme A Paixão de Joana D'Arc de Carl Theodor Dreyer (1928)


Jean Seberg em Joana D'Arc de Otto Preminger (1957)

Dia de Gibran

Divina Música!
Filha da Alma e do Amor.
Cálice da amargura
E do Amor.
Sonho do coração humano,
Fruto da tristeza.
Flor da alegria, fragrância
E desabrochar dos sentimentos.
Linguagem dos amantes,
Confidenciadora de segredos.
Mãe das lágrimas do amor oculto.
Inspiradora de poetas, de compositores
E dos grandes realizadores.
Unidade de pensamento dentro dos fragmentos
Das palavras.
Criadora do amor que se origina da beleza.
Vinho do coração
Que exulta num mundo de sonhos.
Encorajadora dos guerreiros,
Fortalecedora das almas.
Oceano de perdão e mar de ternura.
Ó música.
Em tuas profundezas
Depositamos nossos corações e almas.
Tu nos ensinaste a ver com os ouvidos
E a ouvir com os corações.

Dia de Sandy


terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Fluviografias




A minha cidade tem um rio que a atravessa. Aguarda por chuvas azuis, entra nos aquários de peixes vermelhos, sabe como são as fontes de âmbar, confunde-se com os patos reais e a garças, já encheu cântaros de barro e equilibra-se nas tarambolas.

Às vezes parece-se com o pelo macio dos gatos, outras com a sua língua áspera. Joga às pedrinhas com o vento, acolhe pétalas de todas as flores do Jardim das Rosas. Também conhece a lama e os pedaços de pão que deitam aos patos e peixes. Deixa-se deslizar sob cisnes numa marcha nupcial e recebe os olhares vagos e aquosos dos que aguardam um sinal do tempo.

Às vezes enche-se grávido dos reflexos da lua. Carrega em silêncio a idade da terra. Não extravasa indiscreto, embora os raios cintilantes do sol o deixem com vontade de exuberâncias. Brinca ao longo das margens com sílfides conhecidas, traz pedaços de contos de mouras encantadas.



Ondula com humor sob os cabelos dos chorões que se debruçam com um suspiro arrastado. Chapinha com as asas dos pássaros, aprende canções com as raízes das árvores. Cruza-se com o plástico, atrasa-se à volta das manchas oleosas, planeia um abaixo-assinado, perde tempo… lentamente recupera os gestos, o olhar azul esverdeado trepa pelos ramos e espreita pelas janelas da antiga pensão.

Homens e mulheres atravessam pequenas pontes, passos sobre o soalho de madeira, um chapéu no chão, um bilhete escrito à pressa, relógios sem corda, uma jarra de água, um fio de prata.

Aceita-me como sou. O rio aceita. O princípio e o fim. Mastiga a paisagem com prazer. Sabe-lhe bem a terra lavada e macia. É difícil saber se se dissolve na sua pele porque ganha gestos de abraços que logo se desfazem nos açudes. Leva lavando a areia que já foi pedra, é um escultor febril, viciado nos olhos de Camille.

Adora estórias que ficam escavadas nas margens. Vive com intensidade as paixões de outros rios. Fervilha de ideias que ascendem em gotas absolutas na mesosfera. Gotas que formam corpos de nuvens espessas e se precipitam, com fome, sobre a terra dobrada em roupas íntimas vestidas do avesso. Um homem come a maçã, uma mulher lê o livro, o que resta incomoda-os de tédio.
 
 
 
O rio fecunda a cidade. Abre portas a horizontes que cheiram a tília e incenso. Resguarda-nos das arestas das feridas e do torpor inútil das ressacas. Pode ficar debaixo dos lençóis por uns tempos, parado, pode cercar uma ilha prestes a explodir, desactiva o alarme da entrada, engole espadas cor-de-rosa, limpa a inquietação depositada em palácios, lava escadas da preguiça, corre com o mofo das bancas de cozinha.

Este rio sabe dos cães adoptados, abre-se às mãos que afagam promessas granuladas, sem correntes, dilui o medo negro e denso, dá-se às mulheres que regressam do mar, não teme os homens que calculam geometrias. O rio da minha cidade atravessa latitudes, contorna relevos, assiste aos desastres naturais, preenche falhas calcárias e, à custa de se pintar no mapa, fotografa o detalhe da cor. Junta-se a outros rios invencível e paciente. Parte e retorna. Nunca nos deixa sós.



Os acordes são fáceis, podemos ensaiar depois da escola, cantamos a duas vozes. Pensei em chamar-nos Girls ou Love Peace & Tears. Pedimos aos nossos irmãos para ajudarem com o inglês. Passas por tua casa e trazes a guitarra, assim são duas, como as vozes. Tenho que ir dar folhas de nogueira aos bichos-da-seda... a minha mãe nem sonha que estão no meu quarto.



*
Música – Circle Game, Joni Mitchell (Ladies of the Canyon, 1970)

sábado, 2 de janeiro de 2010

2010


O ano que agora finda não deixa a muitos de nós gratas recordações. Muitas vidas foram destroçadas pela crise que se abateu sobre o mundo; o desemprego foi talvez o monstro maior que comprometeu a existência de milhares de famílias; os baixos salários geram fome e a pobreza e impedem de construir uma vida digna, matam o presente e o futuro. Foi um ano em que as mais básicas aspirações de muitos seres humanos deixaram de poder ser satisfeitos porque vítimas de exclusão, da injustiça, da violência.


Um novo ano é sempre motivo de esperança. Queremos que o ano de 2010 seja mais que uma mudança no calendário. A passagem de ano é a ocasião em que olhamos à nossa volta e formulamos o desejo de que as coisas melhorem. Os discursos que ouvimos nesta quadra têm como palavra chave "esperança". De facto, se à vida humana falta esse farol que é a esperança, o presente fica sem horizonte, fechado no negrume do desespero. Sem dúvida que é essa virtude que nos faz caminhar sempre em frente por mais escuro que seja, no momento, o nosso percurso.


Mas se importa proclamar a esperança, como nesta ocasião costumam fazer os dirigentes dos povos, é necessário que isso não seja apenas um ritual que em nada de palpável altera a realidade. Será necessário que os responsáveis políticos, ao falarem de esperança, não remetam para um futuro incerto a realização dos legítimos anseios dos homens. É necessário que tomem, no presente, medidas que levem à real transformação do mundo para que o desespero não seja a doença mortal que afecta tantos.


O ano que agora finda não foi um ano de tranquilidade social. Deixa um lastro de desemprego, de pobreza, de corrupção que aumentam a conflituosidade e envenenam a nossa vida comum. O pessimismo e a incerteza instalam-se em muito homens. Talvez que a profunda crise em que caímos nos faça acordar para a necessidade da construção de uma nova realidade social. Entremos, pois, em 2010, olhando em frente, apesar de tudo. Façamos da esperança a chama que ilumine o labirinto para onde vamos. Mas também, que a nossa consciência cívica saiba exigir àqueles que proclamam a esperança nos seus discursos que tomem medidas eficazes para que a vida humana seja possível no presente. Bom ano.




Pe. Carlos Ramos


in editorial do jornal O Almonda

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Fim de Ano em Torres Novas

Eduardo, Rita e João

Com o Padre Carlos na festa de Fim de Ano das Paróquias de Torres Novas


Balkan Bamachsan na Praça 5 de Outubro

Uma troupe magnífica ...
 
...que nos fez rir e saltar...
 
...e mesmo com a chuva a caír...
 
...ninguém arredou pé!
 

Brincar com fogo sob água...
 
...dentro de um filme de Kusturica :)

Chegada do Novo Ano
 

A romaria segue pelas ruas da cidade !