segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Compras de Natal




A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades. Enche-se de brilhos e cores; sinos que não tocam, balões que não sobem, anjos e santos que não se movem, estrelas que jamais estiveram no céu. 

As lojas querem ser diferentes, fugir à realidade do ano inteiro: enfeitam-se com fitas e flores, neve de algodão de vidro, fios de ouro e prata, cetins, luzes, todas as coisas que possam representar beleza e excelência. Tudo isso para celebrar um Meninozinho envolto em pobres panos, deitado numas palhas, há cerca de dois mil anos, num abrigo de animais, em Belém. 

Todos vamos comprar presentes para os amigos e parentes, grandes e pequenos, e gastaremos, nessa dedicação sublime, até o último centavo, o que hoje em dia quer dizer a última nota de cem cruzeiros, pois, na loucura do regozijo unânime, nem um prendedor de roupa na corda pode custar menos do que isso. 

Grandes e pequenos, parentes e amigos são todos de gosto bizarro e extremamente susceptíveis. Também eles conhecem todas as lojas e seus preços — e, nestes dias, a arte de comprar se reveste de exigências particularmente difíceis. 

Não poderemos adquirir a primeira coisa que se ofereça à nossa vista: seria uma vulgaridade. Teremos de descobrir o imprevisto, o incognoscível, o transcendente. Não devemos também oferecer nada de essencialmente necessário ou útil, pois a graça destes presentes parece consistir na sua desnecessidade e inutilidade. 

Ninguém oferecerá, por exemplo, um quilo (ou mesmo um saco) de arroz ou feijão para a insidiosa fome que se alastra por estes nossos campos de batalha; ninguém ousará comprar uma boa caixa de sabonetes desodorizantes para o suor da testa com que — especialmente neste verão — teremos de conquistar o pão de cada dia. Não: presente é presente, isto é, um objecto extremamente raro e caro, que não sirva a bem dizer para coisa alguma. Por isso é que os lojistas, num louvável esforço de imaginação, organizam suas sugestões para os compradores, valendo-se de recursos que são a própria imagem da ilusão. 

Numa grande caixa de plástico transparente (que não serve para nada), repleta de fitas de papel celofane (que para nada servem), coloca-se um sabonete em forma de flor (que nem se possa guardar como flor nem usar como sabonete), e cobra-se pelo adorável conjunto o preço de uma cesta de rosas. Todos ficamos extremamente felizes! São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. 

Durável — apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.


Cecília Meireles in Compras de Natal

domingo, 8 de dezembro de 2013

A estória da miúda no retrato - por Manuel Miranda

Uma cidade. Nessa cidade uma praça coalhada de gente a quem o tempo se abre e que rasga o seu caminho por entre emoções muito recentes e estonteantes, uma revolução, a conquista da rua e da convivialidade, as causas universais, o soutro ainda. Tribos distintas fazem destes espaços a sua casa, a sua verdadeira casa comum. De um desses cafés vemos afastarem-se dois jovens em direcção a um dos jardins que marcam a periferia da praça. Ela. Cabelos azeviche, marrafa cortada em sanefa, forma de trazer a linha do horizonte ao rés-dos-olhos. Ele. Risco ao meio em cabelos louros e longos, máquina fotográfica dependurada dum ombro que o denuncia como um ladrão de imagens. Os passos transportam-os a um jardim fechado numa acolhedora associação de estudantes, onde um velho leão de bronze retirado de antiga composição escultórica vigia do seu canto o espaço arrelvado. Ele havia proposto tirar-lhe um retrato, ela aceitara. Ele considerara existir naquele rosto vagamente egípcio algo de enigma, de fotograficamente urgente e tentador. Ela acolhera com bonomia a proposta. Agora sentados na relva conversam enquanto uma pluma de fumo evola entrecortada por pausas de inalação, cigarro cá cigarro lá, criando uma ponte entre os seus lábios. Ele vai explicando o dispositivo cénico que entretanto imaginou. Braço sobre a relva afastando-se do corpo, atitude de repouso e comunhão com a terra, terra-mãe a quem ela entrega o seu rosto, ainda mais alvo pela frescura contrastante do verde. Um cão. Que por ali deambula naturalmente inebriado pelos aromas que as chaminés das cantinas contíguas entregam ao exterior. Enquadrar, focar: o filtro negro necessário à captura da imagem em película de infravermelhos tudo escurece. E o cão. Atraído pela presença humana, irrompe pelo quadro e cobre de generosa lambedela o rosto que parece oferecer-se-lhe, forma de beijar própria da espécie. Um sorriso que se abre no rosto deitado. Cão e fotógrafo irmanam-se por momentos no espaço que vai do desejo ao gesto.
De resto. Não há quem dê por certo ter o cão virado príncipe. A jovem beijada visivelmente não adormeceu, antes rescende na sua peculiar beleza. O fotógrafo, impenitente ladrão de imagens, esse tratou de revelar a película, fazer provas e guardar por muitos anos o que roubou e agora humildemente vem restituir. 
Mensagem para o autor:  Obrigada pela foto, pelas memórias e pelo texto delicioso.
                                         Um abraço GRANDE e  GRATO 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Foto de Manuel Miranda tirada cerca de 1975 nos jardins da AAC

Aguardo pela estória que contarás, a propósito deste retrato, que me fez sorrir assim.
Obrigada Manuel!