terça-feira, 5 de agosto de 2014

O sr. Ego



 
Tenho pensamentos recorrentes que, por vezes, vêm numa avalanche que faz com que toda a minha atenção fique subjugada dentro das emoções retidas de cada memória. Ora, eu tenho muitas memórias na minha memória...

Depois de muito ter lido a respeito, nestes últimos meses, encontrei o nome que se dá a isto: viver dominada pelo ego.

Andei anos convencida de que o ego era uma forma de superioridade e de arrogância mas, pelo que parece, pode disfarçar-se de muitas maneiras e tornar-se o inquilino enraizado de formas-pensamento, estados emocionais ou mentais, que vai chutando, nos tais pensamentos recorrentes, o desagrado e a infelicidade que nos torna tão vulneráveis e prostrados, ao invés do causador deste mal-estar, próspero e gordo de satisfação.

Segundo Eckhart Tolle “o ego surge quando a sua noção de Ser, de “Eu Sou”, que é consciência sem forma, se confunde com a forma.”

O ego adora a forma deformada das coisas e faz finca-pé quanto à estratégia de ir debitando, naquela corrente incessante e cansativa que atravessa a mente, tudo o que quer que acreditemos que é feio ou desajustado para/em nós: o mundo, os outros, a vida.

Quando me deparei com este alerta percebi que o trabalho aplicado, com o objectivo de enfraquecer o sr. Ego, está ainda longe da sua acção definitiva.  Não posso dizer que tenha feito um mau trabalho, mas sem a devida instrução sobre como se desliga a ficha, é o mesmo que desconhecer o que eu sou na minha forma egóica.

Já passei por algumas situações-limite, em que perdi muito, quase tudo, grandes abanões e quedas, mas não cheguei a experienciar a Paz ou a Voz que muitas pessoas referem como a origem da reviravolta total nas suas vidas.
Antes pelo contrário. Esses momentos trouxeram-me angústia e medo, e isso pode querer dizer que, depois de uma determinada noção de identidade me ter sido retirada pelas circunstâncias da vida, o sr. Ego não ficou arruinado como devia. O que foi que ele fez? Identificou-se rapidamente com outras forma-pensamento e o meu Ser ficou preso na armadilha.

Reconheço a capacidade de luta do meu ego em relação a mim. Ele não desiste e eu deixo que sobreviva às minhas custas, e de que maneira...
O que interessa verdadeiramente a este hospedeiro oportunista é alimentar-se de uma identidade, seja qual for, desde que me incomode; da minha parte não entregando o que não faz parte de mim e não aceitando o que tenho e sou, faz-me gerar mais resistências fechando o meu campo de visão. É como se vivesse com as portadas da casa fechadas à espera de ver o céu azul que sei existir do lado de fora.
Assim está ele, o sr. Ego, todo enérgico, e eu cambaleante na minha peregrinação.

Acredito que “depor armas” e entregarmo-nos a uma outra consciência de nós mesmos, é o caminho para lá chegar, para pôr os pontos nos is ao sr. Ego e convidá-lo a sair deste alojamento com direito a reserva de admissão!

Meditar é um estado poderoso de limpeza e de abertura. Sinto, aos poucos, algumas mudanças (têm sido passinhos pequeninos), quanto às resistências a que este ego me sujeita. Sinto que vão sendo modificadas por uma energia diferente e que o vão enfraquecendo (sim, o objectivo é mesmo esse). Gostava que fosse mais rápido (sim, que fosse totalmente desintegrado e me deixasse respirar sem medo) porque esta convivência não me tem sido nada saudável, mas está a ser ao ritmo que consigo e isso é muito mais que nada.

Hoje, no jardim onde estava, dei ouvidos a um pensamento que se atravessou e interferiu na beleza que observava: senti-me a pessoa mais triste do mundo.
Arrepiei-me apesar do calor e quando começou a crescer aquela emoção ligada à tristeza (mais uma série de pensamentos prontinhos a serem disparados lá do covil-passado), apercebi-me do pequeno sinal que apontava na direcção deste boicotador: lá estava o sr. Ego a intrometer-se na minha alegria. Estaria a ficar com apetite de desgraças e achou que já era demasiado tempo para eu estar ligada a outras coisas que não a ele.
Não me fez chorar, não fiquei amarga, não me fechei no quarto.
Agradeci por esta experiência que me permitiu ver o quanto ainda tenho para realizar e sentir.

E um alegre passarinho voou rasante no jardim, fez uns círculos perto de mim e seguiu caminho. Foi uma aula prática sobre o que fazer comigo.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Compras de Natal




A cidade deseja ser diferente, escapar às suas fatalidades. Enche-se de brilhos e cores; sinos que não tocam, balões que não sobem, anjos e santos que não se movem, estrelas que jamais estiveram no céu. 

As lojas querem ser diferentes, fugir à realidade do ano inteiro: enfeitam-se com fitas e flores, neve de algodão de vidro, fios de ouro e prata, cetins, luzes, todas as coisas que possam representar beleza e excelência. Tudo isso para celebrar um Meninozinho envolto em pobres panos, deitado numas palhas, há cerca de dois mil anos, num abrigo de animais, em Belém. 

Todos vamos comprar presentes para os amigos e parentes, grandes e pequenos, e gastaremos, nessa dedicação sublime, até o último centavo, o que hoje em dia quer dizer a última nota de cem cruzeiros, pois, na loucura do regozijo unânime, nem um prendedor de roupa na corda pode custar menos do que isso. 

Grandes e pequenos, parentes e amigos são todos de gosto bizarro e extremamente susceptíveis. Também eles conhecem todas as lojas e seus preços — e, nestes dias, a arte de comprar se reveste de exigências particularmente difíceis. 

Não poderemos adquirir a primeira coisa que se ofereça à nossa vista: seria uma vulgaridade. Teremos de descobrir o imprevisto, o incognoscível, o transcendente. Não devemos também oferecer nada de essencialmente necessário ou útil, pois a graça destes presentes parece consistir na sua desnecessidade e inutilidade. 

Ninguém oferecerá, por exemplo, um quilo (ou mesmo um saco) de arroz ou feijão para a insidiosa fome que se alastra por estes nossos campos de batalha; ninguém ousará comprar uma boa caixa de sabonetes desodorizantes para o suor da testa com que — especialmente neste verão — teremos de conquistar o pão de cada dia. Não: presente é presente, isto é, um objecto extremamente raro e caro, que não sirva a bem dizer para coisa alguma. Por isso é que os lojistas, num louvável esforço de imaginação, organizam suas sugestões para os compradores, valendo-se de recursos que são a própria imagem da ilusão. 

Numa grande caixa de plástico transparente (que não serve para nada), repleta de fitas de papel celofane (que para nada servem), coloca-se um sabonete em forma de flor (que nem se possa guardar como flor nem usar como sabonete), e cobra-se pelo adorável conjunto o preço de uma cesta de rosas. Todos ficamos extremamente felizes! São as cestinhas forradas de seda, as caixas transparentes os estojos, os papéis de embrulho com desenhos inesperados, os barbantes, atilhos, fitas, o que na verdade oferecemos aos parentes e amigos. Pagamos por essa graça delicada da ilusão. E logo tudo se esvai, por entre sorrisos e alegrias. 

Durável — apenas o Meninozinho nas suas palhas, a olhar para este mundo.


Cecília Meireles in Compras de Natal

domingo, 8 de dezembro de 2013

A estória da miúda no retrato - por Manuel Miranda

Uma cidade. Nessa cidade uma praça coalhada de gente a quem o tempo se abre e que rasga o seu caminho por entre emoções muito recentes e estonteantes, uma revolução, a conquista da rua e da convivialidade, as causas universais, o soutro ainda. Tribos distintas fazem destes espaços a sua casa, a sua verdadeira casa comum. De um desses cafés vemos afastarem-se dois jovens em direcção a um dos jardins que marcam a periferia da praça. Ela. Cabelos azeviche, marrafa cortada em sanefa, forma de trazer a linha do horizonte ao rés-dos-olhos. Ele. Risco ao meio em cabelos louros e longos, máquina fotográfica dependurada dum ombro que o denuncia como um ladrão de imagens. Os passos transportam-os a um jardim fechado numa acolhedora associação de estudantes, onde um velho leão de bronze retirado de antiga composição escultórica vigia do seu canto o espaço arrelvado. Ele havia proposto tirar-lhe um retrato, ela aceitara. Ele considerara existir naquele rosto vagamente egípcio algo de enigma, de fotograficamente urgente e tentador. Ela acolhera com bonomia a proposta. Agora sentados na relva conversam enquanto uma pluma de fumo evola entrecortada por pausas de inalação, cigarro cá cigarro lá, criando uma ponte entre os seus lábios. Ele vai explicando o dispositivo cénico que entretanto imaginou. Braço sobre a relva afastando-se do corpo, atitude de repouso e comunhão com a terra, terra-mãe a quem ela entrega o seu rosto, ainda mais alvo pela frescura contrastante do verde. Um cão. Que por ali deambula naturalmente inebriado pelos aromas que as chaminés das cantinas contíguas entregam ao exterior. Enquadrar, focar: o filtro negro necessário à captura da imagem em película de infravermelhos tudo escurece. E o cão. Atraído pela presença humana, irrompe pelo quadro e cobre de generosa lambedela o rosto que parece oferecer-se-lhe, forma de beijar própria da espécie. Um sorriso que se abre no rosto deitado. Cão e fotógrafo irmanam-se por momentos no espaço que vai do desejo ao gesto.
De resto. Não há quem dê por certo ter o cão virado príncipe. A jovem beijada visivelmente não adormeceu, antes rescende na sua peculiar beleza. O fotógrafo, impenitente ladrão de imagens, esse tratou de revelar a película, fazer provas e guardar por muitos anos o que roubou e agora humildemente vem restituir. 
Mensagem para o autor:  Obrigada pela foto, pelas memórias e pelo texto delicioso.
                                         Um abraço GRANDE e  GRATO 

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Foto de Manuel Miranda tirada cerca de 1975 nos jardins da AAC

Aguardo pela estória que contarás, a propósito deste retrato, que me fez sorrir assim.
Obrigada Manuel!