Meio suspiro de cansaço leva-me de autocarro à cidade. Gente conformada, sem compras, nem fogão, nem cortinas, sem quem lhes seque o suor de dias e dias, que entra à força na minha roupa, nos meus livros, no meu espanto. A minha atenção amarra-se em tanto desamor, tanto desperdício. Mulheres na sua maioria condenadas à brutalidade do destino, aos filhos perdidos, às lutas sem causa, ao lixo acumulado no canto do quarto, ao barulho da desatenção do mundo.
Fito-as magoada e elas retribuem-me num desconsolo confessado. Não têm homens verdadeiros, mas animais sôfregos, não encontram lares tranquilos, mas pardieiros atulhados. Da janela vou a pique para o Jardim Botânico que de longe me promete um verde cintilante na cinza do dia. Consigo fugir e volto para trás. Não as posso deixar, não por enquanto. Se descobrissem a sua árvore, o seu canteiro, o seu bicho e se se deixassem trespassar pela doçura, poderiam saltar juntas os muros da dor e seguir outro destino.
Ao longe há outras mulheres, não como estas, sem o sangue pisado na voz e a alma a cheirar a lixívia. Essas outras sorriem e acenam, cantam numa língua desconhecida uma melodia de ninar. Enrosco-me como um gato com frio, trepo-lhes para o colo e adormeço até ficar sem nenhum colo para ter.
O autocarro segue lotado com os filhos que gritam tiranias às mães e as mães que sacodem os filhos como sacos de compras vazios. Estão exaustas as mulheres. Levantaram-se de cama sem uma palavra murmurada, sem memórias de um café partilhado, sem homens risonhos que as abracem, sem lhes ter ocorrido sequer a ideia de uma aventura impossível. Ali vão como gado para o matadouro, os seus ventres deformados e indistintos, se são de velhas ou de novas, olheiras encostadas aos varões do autocarro, roupa com nódoas, unhas repintadas, um perfume-do-chinês misturado com um beijo fora de prazo que lhes amarga a boca.
São heroínas, são guerreiras, são rainhas coroadas por dores que não fazem parte da estória. Nasceram já gastas pelo uso e acabadas pela carência. Vão ficando pelo caminho, nas paragens, nos passeios, nas portas dos fundos a servir um género de mundo que não se sujeita a vê-las, seguem sem saber que a um gesto seu tudo mudaria, assim o escolhessem e o quisessem e os homens verdadeiros amá-las-iam como nos filmes franceses.
Volto com urgência ao livro que troquei por aquele mundo de privações. Preciso chegar a tempo daquele encontro narrado que há-de ser para a vida e para a morte. O autocarro parou, olho para a porta, olho para o livro. Estou nesta margem porque quero chegar à "raíz-firme-das-coisas". Quero saber todas as horas para além do que existe quando nos damos a tudo. Saio, não saio, a paragem a ficar para trás, uma poça de lama, quero terra firme, gastar palavras descuidadas, orientar-me no escuro, dar um sentido de permanência a pequenas coisas. Preciso de fazer a viagem rio acima, rio abaixo, porque estes são tempos de cólera e o amor é a hera que rebenta da pedra.
Há vozes que nos prendem por pequenos detalhes. Respirações, dicção, timbres e grandes interpretações. Não utilizam o excesso de potência para se afirmarem como grandes. O que nos fica é um contínuo arrepio mesmo depois do silêncio. Assim se tornam intemporais, como é o caso desta.
*
Hard Love, June Tabor (Angel Tiger – 1992)
Hard Love, June Tabor (Angel Tiger – 1992)
Disseste tudo.
ResponderEliminarBrutal,Maria.
SONHEMOS QUE VIRÁ O DIA EM QUE TODAS AS MULHERES SINTAM AS DOÇURAS DO MEL, AS TERNURAS DA PELE E OS CARINHOS ENCANTADOS QUE NOS ENSINEM A TODOS A BELEZA DE SERMOS UMA BRISA QUE ABRACE TODOS OS HOMENS E MULHERES DE MÃOS DADAS COM A ALEGRIA DE NOS PERCEBERMOS UNS AOS OUTROS ENTRE GEMIDOS DE AMOR.
ResponderEliminarbIBLIOTECA DE oEIRAS, 19/12/2009 - jORGE bRASIL mESQUITA
Saudações, Né. Votos felinos de feliz Natal.
ResponderEliminarVotos de feliz Natal para XII e para o Helder António.
Jorge Brasil Mesquita
www.fisgasdotempo.blogspot.com
Saudações Jorge! Feliz Natal para si :)
ResponderEliminar:) Boas Festas,Jorge!
ResponderEliminarNeliz Fatal!
«...estes são tempos de cólera e o amor é a hera que rebenta da pedra.» Bela frase, Né.
ResponderEliminarRetribuo com esta, do Orhan Pamuk ("Terra de Neve"): «... e quando me apercebo que vamos passar por este mundo sem deixar rasto depois de levarmos umas vidas estúpidas, compreendo com raiva que na vida só resta o amor.»
Palavras sábias as de Orhan Pamuk. Obrigada pela partilha :)
ResponderEliminarBj*
«And the only love I knew about was hard love
ResponderEliminarIt was hard love every hour of the day
When Christmas to my birthday was a million miles away»
Magnífico texto: «tanto desamor, tanto desperdício».
Feliz Natal, Né, XII, Jorge (obrigado pelos seus votos) e Carlos.
Feliz Natal,Helder! Muita Paz *
ResponderEliminar(Extensivo a todos os tripulantes da Nave!)
Obrigada Hélder e XII :)
ResponderEliminarAssim até dá vontade de dizer mais coisas!
Bj**