A lembrança suspensa por um fio cola-se à nostalgia desvanecente. Enrolada em mim, testa nos joelhos, braços em cruz, punhos fechados, vejo imagens confusas através da parede. Já quase sem as poder distinguir apuro o ouvido. Se um dos sentidos não está aferido outro tornar-se-à preciso. Preciso saber que lugar ameno é este. Quanto tempo? Quase 273 dias… Cansa-me esta imensidão aquática. Não vejo o sol nem a lua. Não vejo para fora. Episódios vagos tracejam uma forma de vida nómada, faminta, colorida, de movimentos que aqui não consigo manter coordenados. Dançava entre o deserto, meu mundo, e alguns oásis de madrepérola rara. Uma icharb ondulante deixa revelar cabelos de Henna. A salguta instiga o bendir. Os snujs afugentam os maus espíritos. Uma rota talhada como o nay. Um sopro divino uno.
Não me apercebi da mudança, mas já anseio pelo que ainda não sei.
Algo me acalma. Parece ser uma voz. Sim, canta para dentro. Quero espreguiçar, abrir estes braços, desfazer esta forma de novelo que sou, preciso estender-me como o deserto. A voz junta-se a outras. Alegram-me e entristecem-me.
Numa madrugada abafada fiquei ansiosa. A voz que cantava para dentro calou-se. Senti um tumulto de águas medonhas. Tive medo, tive curiosidade. Havia dor e foi a primeira que senti. Fui lançada e puxada. Vozes indistintas troaram aos meus ouvidos. Viraram-me de cabeça para baixo, aprendi o primeiro choro. Não conheço ninguém. Embrulham-me em panos que não são abaias. Mas, o que são abaias? Estava a lembrar-me de quê? Algo suave como uma mão faz-me festas na cara. Sinto o perfume de jasmim e rosas de uma memória antiga que agora volta ao princípio.
" É uma menina! Tem olhos de amêndoa."
Um som curioso distingue-se do resto. Sei o que é. Música! Mas que música?
Chegou-me ontem da América - diz o pai para a mãe - Está a ser um sucesso enorme por lá, dizem-me que não toca outra coisa na rádio! É cá um artista este Elvis, um bocado selvagem, enfim… Sabias que lhe chamam Elvis the Pelvis? Nunca lhe podem fazer plano americano, só da cintura para cima… estás a vê-lo aqui todo aprumado de farda? … Se quiseres ponho outro disco no pick- up. Se calhar é melhor não é?... estás a recuperar do parto... Ella Fitzgerald... vais gostar! Tu sempre preferiste vozes de contralto.
*
Música
Oum Kalsoum - El Sett, 1936
Elvis Presley - A Big Hunk O' Love (1959)
Ella Fitzgerald – My Old Flame (Radio Recorders Hollywood, 1959)
Glossário
Icharb – Lenço que as mulheres usam na cabeça
Salguta – grito das mulheres berberes usado em casamentos e despedidas
Bendir - pandeiro grande feito de pele de cabra e madeira
Snujs – pequenos címbalos usados na dança do ventre
Nay - instrumento de junco simples, com as duas pontas abertas, com 5 a 7 (mas normalmente 6) furos, sem bocal.
Abaia – capa de lã beduína usada à noite para aquecer.
Música
Oum Kalsoum - El Sett, 1936
Elvis Presley - A Big Hunk O' Love (1959)
Ella Fitzgerald – My Old Flame (Radio Recorders Hollywood, 1959)
Glossário
Icharb – Lenço que as mulheres usam na cabeça
Salguta – grito das mulheres berberes usado em casamentos e despedidas
Bendir - pandeiro grande feito de pele de cabra e madeira
Snujs – pequenos címbalos usados na dança do ventre
Nay - instrumento de junco simples, com as duas pontas abertas, com 5 a 7 (mas normalmente 6) furos, sem bocal.
Abaia – capa de lã beduína usada à noite para aquecer.
(De antemão, peço desculpa à anfitriã e aos/às hóspedes da nave pelo elevado número de hiperligações citadas abaixo.)
ResponderEliminarNão admira que Amália [1] admirasse Oum Kalsoum [2], «A Voz dos Árabes».
1959, ano em que nasceu a autora desta notável “Voz de Dentro” (parabéns, Né!), ao qual Patti Smith [3] dedica um tema, teve — além das de Elvis [4] e Ella [5] mencionadas acima — memoráveis canções de Sarah Vaughan (“Broken Hearted Melody”) [6], Dinah Washington (“What A Difference A Day Makes”) [7], Chuck Berry (“Almost Grown”) [8] e Fats Domino (“I Want To Walk You Home”) [9], por exemplo.
_______
[1] http://periodiccircumspection.blogspot.com/2009/10/amalia.html
[2] http://www.youtube.com/watch?v=K3tB-6R7p4E
[3] http://www.oceanstar.com/patti/lyrics/1959.htm
[3] http://www.dailymotion.com/video/x5lsn_patti-smith-1959-live-bxl-2004_music
[4] http://www.youtube.com/watch?v=6Sk1cSzZBqU
[5] http://mog.com/music/Ella_Fitzgerald/Love_Letters_from_Ella/My_Old_Flame#play
[6] http://www.youtube.com/watch?v=c28qdm447v4
[7] http://www.youtube.com/watch?v=OmBxVfQTuvI
[8] http://www.youtube.com/watch?v=KkuU0Li5qVY
[9] http://www.youtube.com/watch?v=HlCFxZX6fLQ
Sempre soubeste o que fazer com um novelo,e na imensidão aquática,podes sempre encontrar as Baleias-de-Bossa.
ResponderEliminarPermite-te,um contralto virago...
Um abraço,
sem paredes. *
olá Né. Parece que já me vejo integrado na fuga dos escaravelhos para o deserto. Não há novelos nem defesas que resistam, mas quer queiram ou não eu também sei resistir. Mudei de blogue: www.fisgasdotempo.blogspot.com. Tem um link para os gomos do tempo.
ResponderEliminar07/12/2009 - Jorge Brasil Mesquita
Olá Hélder :)) está à vontade para postares os links que achares. Sempre bem vindos, pois claro!
ResponderEliminarClaro que sim, XII ;) baleias-de-bossa as mais expressivas.(Digamos que são as Callas e Sumacs dos oceanos!)
Muito bem Jorge, figas para as ondas menos boas...
Bj*