sábado, 6 de março de 2010

À Primeira Vista

 
 
O Jardim da Sereia onde todos julgavam acontecer a transformação da minha amiga Paula para Pixie estava em festa. À entrada montámos duas bancas com livros, fantoches, louças e quadros. Ao fundo da ala central foi erguido um palco. Muitas actividades destinadas para crianças e jovens animaram a tarde. Houve um cortejo organizado pelos estudantes a que se seguiu um bem humorado Enterro da Reacção. O ponto alto seria à noite, no espectáculo Canto Livre com o Adriano Correia de Oliveira, Fernando Tordo e Ary dos Santos.

 

As coisas corriam à velocidade da luz com as campanhas políticas, os comícios e as primeiras eleições. Queríamos esse compromisso, fazer parte da mudança de que todos falavam, fazendo a nossa pequena parte. A minha amiga não se envolvia. Dizia que as coisas não eram nem pretas nem brancas, que não havia bons nem maus, que os que foram uma coisa eram agora outra e ao contrário também. Recorria a algo mais filosófico-espiritual que envolvia conceitos genéricos para o planeta. Predizia a importância dos povos unirem as suas diferenças e concluía não haver nenhum sistema político, até à data, que levasse isso em conta. Dissertava sobre uma orientação à escala mundial com mais participação das mulheres. As revoluções nunca são justas.

Pois... como se coloca o mesmo pensamento em desejos tão diversos? Ontem fumei uma ganza e foi o mais perto que consegui chegar em sintonia comigo - confessou

Fumaste???? Ohhh Paula para quê??? Que coisa… - não escondi o meu desagrado. Detestava que passassem a vida naquilo. Ficavam moles e com uns sorrisos parvos.

Não tem mal nenhum eu controlo a cena! Eu faço-o para conhecer os meus limites - filosofou ela.

Pois …e quando deres por ela és uma nuvem de fumo e delírios… - eu já sabia os argumentos de cor, eram todos iguais e faziam as mesmas partidas. Estava farta de ver os meus amigos de infância a ficar passados da cabeça. Mas ela não ouvia. E eu caía sempre na asneira de a incluir em actividades que depois o fumo fazia esquecer.

Era o caso daquele dia. Consegui despertar-lhe a atenção para aquela festa e iria ajudar-me na banca, mas "a Paula chega sempre atrasada" - lamentei.

Vendi mais um jornal, maldisse o calor e a poeira levantada à passagem do Rancho Infantil de Vila Pouca do Campo, bebi uma Laranjina C, até que a vejo surgir com o balanço ritmado dos seus passos, um pouco etéreos para o espaço que pisava. Estava tão descontraída como se estivesse habituada desde o início ao paraíso. Talvez tenha encontrado algo parecido onde dispersa o tempo e converte o sofrimento. Mas de que falo? Esta não é altura para blues! Está tudo a despontar como a primavera com promessas de bom tempo o tempo todo. Nada de distracções no processo em curso porque o tempo pode mudar.

Chegou com um grande sorriso, raios te partam que estiveste a fumar, pensei, mas não estava com disponibilidade mental para lhe passar um sermão. Em vez disso apontei para a banca:

Estás a ver estes livros? Sabes quem é o autor? Manuel Tiago, mas na verdade é o camarada Álvaro Cunhal. Ele nunca confirmou, nunca fala dele próprio. Há dias visitou a nossa sede e quando viu o cartaz que estava à entrada com a sua fotografia pediu para ser retirado. Não gostou. É contra o culto da personalidade. Estes desenhos? Foi ele que os fez quando esteve preso 8 anos na solitária e mais 3 em Peniche. Gosto destes traços poderosos e determinados. Há pessoas que não vergam aconteça o que acontecer. A minha avó era assim, a tua também… 20 km para ir buscar água... dias a caminhar sob o calor de Angola...

Ficou a olhar para as tiras das sandálias, fez uma curva com a ponta do pé (que me pareceu igual à da foice da bandeira que cobria a banca) e transformou-a em múltiplas folhas de uma planta exuberante. A acompanhar o momento inspirado que se alastrava pelo chão revelou não se lembrar do tempo e dos impossíveis, às vezes sentia algumas cores e também o cheiro da latrina do musseque, dos sabores sem gosto, mas o que persistia nela "Só mesmo as palavras e as distâncias".

Luanda Dondo vão, cento e tal quilómetros mangas e cajus marcos brancos meninos nus…* - cantou - Quem o diz é Luandino Vieira e se o poeta diz é porque é verdade mesmo que não pareça à primeira vista.

2 comentários:

  1. Partilho da ideia (das várias)de Álvaro Cunhal,"contra o culto da personalidade".Pelos vistos José Vieira Mateus da Graça (Luandino Vieira),também!Lembro-me ter recusado o Prémio Camões.É irónico o facto de o terem encarcerado à força(no Tarrafal),e actualmente viver no isolamento,por opção...

    Xiii Laranjina C!!A ultima vez que bebi foi há décadas na Chamusca,com a bela da broa!!De mel claro!! :))

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