domingo, 6 de junho de 2010

Metamorfose eterna


A cidade cerca-me. Coisas frenéticas, opacas, e diferentes ocupam lugar ao  inexistente necessário. Esta enchente consumida em arritmias pesa-me na paragem do autocarro, nas saídas do metro, na parede do museu e nela fico a pensar o resto do tempo. A enchente consome a cidade, a cidade-alvenaria-das-enchentes permanece mesmo que um dia desapareça noutra enchente. Camden, os punks, os góticos, os pubs, as lojas de roupa em 2ª mão… Roundhouse o lugar mítico do psicadelismo onde os Pink Floyd actuaram em 66. London calling, o Tamisa a encher a cidade, a cidade condicionada pelas enchentes de erros perigosos, por acidentes ocorridos a milhas de distância, que causam danos impensáveis.




A ideia é a de ir errando pelos passeios e atravessar, por enquanto, as passadeiras, constatar o impacto da ausência, apesar do pó levantado, olhos adentro. Na montra há vestígios do que foi outra enchente. Uma série de fotografias antigas. Estranhas e fascinantes. Rostos da altura em que os rostos faziam parte de alguém, tão diferentes destes, também fascinantes, difíceis de traduzir, sem fundo, sem voz, por vezes sob legendas, estranhamente forçados a fazerem parte de todo o mundo. Dentro do cerco londrino caminha-se sem tomar parte de nada. No tempo dividido, que todos parecem conhecer, há um espaço onde se escava uma espécie de liberdade que escapa à maioria. A enchente procura uma aprovação de olhares, um destroço feliz e os desafortunados perguntam: Quem de facto amou? Com pressa agarram-se ao bordão da felicidade possível, lavando em virtudes as suas feridas. Os olhos desaprovam o avanço feito e por dentro da fina cerâmica, onde a enchente se esconde, ouve-se partir o objecto. Dele se desprende a atenção isolada que tenta uma proximidade no gesto. Não é simples juntar partes da vida. Nem tempo nem contratempo permitem retomar o solo quase perfeito.




Descobre-se que passámos uma vida a procriar paisagens dentro de espaços insustentáveis. Quem de facto amou? Redesenha-se a forma imprecisa de uma nova matéria, que não se desgaste e desapareça. Tudo parece certo. O ritual de quem cumpre o seu destino e a enchente que parece feliz. O barco leva personagens pelo Regent’s Canal, passa um avião no céu, os gatos preguiçam do interior das janelas, os poetas sentem-se inspirados e eu, entre o Tamisa e o invisível, estudo os contrastes. Desdobram-se convites sem exigências, chamam-me para que siga as estrelas-do-mar e me converta à metamorfose eterna. Mas quem amou de facto a esse ponto? Penso em Virgínia de solidão vestida caminhando no destino desapegado da terra. Dona de si ou presa nas suas visões? A vigília do confronto sem soluções. A demência na moldura que acaba por ceder às mensagens imprudentes do desejo.

 


Primeiro e último momento.
A ausência chama-nos por sermos incapazes de desprender o tempo de uma ordem necessária. O falso pode ser verdadeiro, a ciência o milagre. Ainda me restam vestígios de pedras nos bolsos, o caderno sem folhas regista uma viagem à revelia do corpo e um eco de infância deposita-se nas margens. O Tamisa galga a alvenaria da cidade cheia, os Mohawks desobedecem aos compromissos diários, os enamorados tiram polaroids com a Torre de fundo, e a cera do museu esconde a imperfeição humana.

 



Quanto dura a paixão pela vida? Virgínia mergulhou determinada para o espaço interior e dança ao som da eternidade com paixão, contra a sombra infeliz que ficou deste lado. Os erros sucedem-se, revelam-se na câmara escura, ficam em todas as fotografias, sobre eles há quem escreva canções e ensaios. Não se sabe, de facto, quem amou Virgínia.

 

Não sabemos quem amamos. Se alguma vez nos amaram. Essa impressão de amor é abatida pelas cidades que conjugamos nos perfis assimétricos que nos passam ao lado, almas riscadas como fósforos  que nos queimam entre os dedos.
Achamos que despertamos sempre a desatenção com uma pequena luz acesa.


* ao som de The Passion of Lovers, Bauhaus (Mask , 1981)

4 comentários:

  1. “The Passion of Lovers”: a minha canção preferida da banda Bauhaus.

    «Não somos gotas de chuva que o vento depressa seca. Graças a nós os jardins crescem e ouve-se o rugido das florestas. Renascemos sempre sob novas formas. É isso que explica a minha confiança, o meu sentimento de uma estabilidade essencial, que de outro modo seria monstruosamente absurda, quando enfrento a corrente humana nesta rua congestionada, abrindo caminho entre a multidão de corpos, e aproveitando os instantes em que não há risco para atravessar a rua. Isto não é vaidade, porque eu não tenho ambições. Não me recordo dos meus dons particulares, nem das minhas características pessoais, nem dos sinais de nascença, nem da forma dos olhos, da boca ou do nariz. Nestes momentos eu não sou eu.» [Virginia Woolf, AS ONDAS, tradução de Francisco Vale, Lisboa: Relógio d’Água, 1988, pp. 92-93.]

    Ânimo, Né!

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  2. «Quando no autocarro ou sobre os carris do metropolitano encaramos os outros, estamos ao mesmo tempo a olhar para o espelho; é por isso que se torna possível vermos então como os nossos olhos são vagos, vítreos. E os romancistas do futuro darão uma importância crescente a estes reflexos, porque não há apenas um reflexo, mas um número quase infinito deste género de refracções; aí estão as profundidades que os romancistas do futuro terão que explorar; esses os fantasmas que terão de perseguir, deixando cada vez mais de lado as descrições da realidade, pressupondo-a já suficientemente conhecida pelo leitor, como fizeram também os Gregos e Shakespeare, talvez — mas estas generalizações começam a parecer-me inúteis. As ressonâncias militares da palavra “generalização” são evidentes. Lembra-nos uma série de dispositivos destinados a conduzir as pessoas, gabinetes de ministros — toda uma quantidade de coisas que em crianças pensámos serem as mais importantes, os modelos de tudo o que existe, e de que não poderíamos afastar-nos sem incorrermos no risco da condenação eterna.» [Virginia Woolf, de “A Marca na Parede”, in A CASA ASSOMBRADA, tradução de Miguel Serras Pereira, Lisboa: Relógio d’Água, Novembro de 1984, p. 13.]

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    Boa noite, Né, com o desejo de que, a exemplo da grande luz acesa de Holoteta, as estrelas-do-mar brilhem em todos os dias mundiais dos oceanos.
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  3. Metamorfose,que me inquieta...
    Beijo

    DOUBLE DARE

    I dare you, to be real
    To touch a flickering flame
    The pangs of dark delight
    Don't cower in night fright

    Don't back away just yet
    From destinations set
    I dare you to be proud
    To dare to shout aloud
    For convictions that you feel
    Like sound from bells to peal
    I dare you to speak of your despise
    For bureaucracy, hypocracy - all liars

    I dare
    I dare
    I dare- you- you

    (Bauhaus,In the Flat Field/1980)

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  4. Boas escolhas Hélder ;)
    Metamorfoses inevitáveis XIIzinho :)
    Bj*

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