Seis meses depois de todos os astros boreais a palavra celebrou-se sobre o silêncio da casa. No recanto da sala visiono o que quero levar e o que posso deixar. As janelas de vidro duplo deixam entrar uma claridade ainda trémula, que surge da tundra.
Foi longa esta permanência, talvez a maior que vivi. O norte possível, o mais norte de tudo, a extensão de beleza e silêncio como a madeira que se combina com o fogo, encerrou este ciclo lunar. A caminho de outros caminhos de ouro, arriscando recifes e outras amplitudes, vou-me desabitando da metade da cama, das escadas de madeira, da entrada tapada pela neve, do adeus (pre)destinado, do ritual dos fiordes, do reflexo (so)lícito, das portas que se fecharam e se abriram à passagem de tanta esperança.
A paisagem matizada sobre o pano branco e macio deu-me a noção do traço. Posso premeditar lugares e sortes até fazer vontade à vontade de chegar. Posso soltar-me das memórias mais dóceis, sobreviver ao inferno raso da nostalgia, criar texturas diversas de palavras consoante o voo e o tempo. Em qualquer cidade posso resistir às sombras e feridas que teimam em não sarar. Se eu quiser posso ser árvore no concreto e multiplicar-me nos céus. Se eu deixar, a luz pode descer sobre qualquer rosto adormecido ou acordado. Posso devolver-me ao silêncio como um grão de pólen que se desfaz sem paciência gasta, sem cair em dias vazios, sem arrastar o mundo para o luto, sem ter medo de dormir. Posso construir-me, asas tranquilas, sobre a busca extensa porque nada acaba aqui. Há mais exílios voluntários, névoas com voz de reza, sílabas preciosas e dores reencarnadas com um fim.
Sou refúgio e clarão, escombros e raiz, desequilíbrio e consistência. Há um Graal, o absoluto, uma nova alegria de dentro, dialectos que anunciam a passagem transparente, e línguas que falam de um tempo intermédio. Há anjos renascidos que implodem no universo e estrelas deslumbrantes que invadem angústias num fenómeno natural. O medo é superado pela entrega. Um salto sobre os muros do real e chega-se ao trilho. Vida devolvida, nada a temer. Dentro da minha garganta surgem palavras cintilantes dos poetas, e das florestas de coníferas uma respiração pausada.
Dentro do âmbar expirado há mundos de fungos e insectos. Olham-me de novo eu mais atenta que eles. O lugar onde tudo se passa em câmara lenta onde cada objecto é reencontrado sem o menor esforço nem distracções. O sábio disse que "os impactos de amor não são poesia"*. Não sabia. Essa forma de pernoitar em despensas casuais não fez mais do que me apertar o coração contra a parede. Chego atrasada às lágrimas, permaneço roda de um moinho de vento, sou passageira em trânsito até poder dançar com estátuas que sintam só através de mim. À lama e à luz agradeço. E se me grita uma aflição de saber que o tempo não vai esperar abro as asas de cera da minha alma.
Olho para a terra a 36 mil pés de altitude. Desconheço outra perspectiva senão no momento de levantar voo. Há penas cinzentas no chão do país dos espelhos. A neve regressa sobre os refugiados que partiram de nenhures como eu. Recorda-lhes as cortinas esvoaçantes das janelas pintadas de branco e o som do violoncelo que sai delas. A voz fatigada dos exilados brinda às recordações com gotas de rosé.
Desprendo-me do cinto de segurança. Peço uma água mineral e um café enquanto inspiro as últimas folhas do caderno preto. A 36 mil pés de altitude do que conheço as palavras abstêm-se de conversar. Faço um círculo mágico para as canções brilharem no escuro e se estenderem sobre espelhos inquebráveis. Seguro a beleza do âmbar entre as mãos.
Posso olhar para mim agora.
* excerto retirado de Conclusão de Carlos Drummond de Andrade in Fazendeiro do Ar, 1969
ao som de: Came So Far for Beauty - Leonard Cohen (Recent Songs, 1979)
"Desprendo-me do cinto de segurança" :)
ResponderEliminarLevo no peito o âmbar com as tuas palavras.
Ai a (trans)lucidez da alma...
Beijos.