segunda-feira, 29 de junho de 2009

Dobadoura e gira-discos


Depois da tenda do circo desmontada, decidi ir por outro caminho. Refugiei-me na Serra de Sintra por uns meses e, mais tarde, no centro histórico de Coimbra.
Repensar numa "estratégia" de sobrevivência, que nunca mais me obrigasse a fazer da música uma opção oportunista, requeria um espaço longe da "feira das vaidades" e dos seus despojos.

Descobri algumas habilidades a que me podia dedicar. Desenhei e produzi brincos em vinil, que eram vendidos como cerejas. O vinil, em questão, era uma quantidade de discos (LP's e singles)
muito riscados e deformados, que eu recortava com um pirogravador e que resultava em formas curiosas. Peças únicas e exclusivas. Assim que se acabou o stock de discos intocáveis, acabou-se a bijouteria...

Daí passei a um hobbie antigo, que era o tricot. As mulheres da minha família sempre foram muito hábeis nas rendas e nos bordados e em todos os trabalhos que requeriam paciência e muita habilidade de mãos. Faziam autênticas obras de arte e eu, bafejada por essa herança genética , incluía-me na faixa de tricotadeira esmerada.
A minha perícia preferia peças muito trabalhadas. Ponto Rosas de Portugal, Ponto Bordado Inglês, Ponto Florentino, Ponto de Diamante Ajourado, Ponto de Bambu, Ponto de Telha.... eram desafiadores! Quanto mais elaborada fosse uma peça, mais gozo me dava fazê-la.
Tricotei quilómetros de vestidos, camisolões, cachecóis, gorros, casaquinhos de bebé, carapins, mantas, xailes, casacos, pullovers.... à vontade do freguês!!! Os meus serões eram, assim, passados a escutar música, a percutir as agulhas e a dar laçadas.
O que é certo é que já não chegava para tantas encomendas.
Havia uma loja que vendia as minhas criações, fora uma quantidade considerável de clientes, que encomendava outras tantas. Andava assoberbada em trabalho.

Tinha uma dobadoura de madeira, comprada numa feira, que era o meu escape de velocidade. Colocava as meadas que rodopiavam à velocidade da luz até adquirirem a forma de novelos redondinhos, prontos para o saco de pano onde se juntavam às agulhas. Estas variavam do 2,5 até ao 8 conforme o trabalho que tinha em mãos.

Normalmente comprava lãs numa loja, na rua do Corpo de Deus, que adorava porque era um mundo de cores e espessuras. "Lãs Monteiro", assim se chamava. Quando não havia o que queria (o que era raro) encaminhava-me para as "Lãs Rostex", na rua Ferreira Borges.

Gostava dessa baixa movimentada, com pessoas que se dedicavam às coisas mais variadas: pares de namorados a fazer "piscinas" desde o largo da Portagem até à rua da Sofia, artesãos talentosos a vender as suas obras em bancadas coloridas, espontâneos a tocar e a cantar de-tudo-um-pouco, lojas atarefadas a atender clientes e a discoteca Novalmedina onde a figura da Lina imperava. Já lhe comprava discos em miúda e continuava a fazê-lo. Ela tinha um imenso gosto para além de saber o que se fazia e quem era o quê na música. Tudo o que fosse diferente e moderno ela tinha. Era uma simpatia e deu nome à casa. Paragem obrigatória a que eu fazia, com muito gosto, para visitar a Lina.

Sempre que podia tomava um café no Nicola, ou na Brasileira. Também havia o Central, mas esse era para outra faixa etária e, principalmente, de outro quadrante político. Eu adorava a Brasileira, apesar dos bolos do Nicola serem superiores, por ser um local de encontro. Jornalistas, intelectuais, activistas, estudantes, forasteiros, pessoas interessantes, que não faziam das bicas curtas ou cariocas em chávenas escaldadas, um acontecimento de corte e costura supérfluo. Ali "cortava-se", dissecava-se, e discutia-se, mas sobre causas com motivo e de forma apaixonada!

Quando, tempos depois, mudei para um apartamento no Quebra Costas (a casa mais engraçada que tive até hoje) pude apreciar de forma intensa aquele quotidiano no coração de Coimbra. Era um local privilegiado. De dia, a vida dos vários ofícios, que por ali se praticavam (o alfaiate, os marceneiros da casa dos móveis, a casa das canetas, o alfarrabista), de noite outras motivações que surgiam nas andanças que se escutavam por aquelas escadas bem puídas.
Eu, de balcão, presenciava alguns happenings que iam acontecendo no Bar do Quebra Costas.
Lembro-me do faquir que lá foi fazer uma performance e se queimou numa bochecha, e das sessões de boa música que ecoava pelas ruinhas da Sé Velha.

Até que um dia a música começou a chamar por mim, não para a cantar, mas para a passar. O meu querido amigo Franscisco Amaral que, para além da Íntima Fracção (programa de culto até hoje e que eu acompanhava enquanto tricotava) tinha um programa diário na RDP Centro - Boomerang - lembou-se que eu podia fazer uma rubrica semanal. Ora, logo a minha pessoa que sempre preferiu estúdios a palcos e a rádio à televisão, ficou encantada com o convite. Assim foi a minha 1ª experiência radiofónica à volta dos discos, com música feita por mulheres.


*
Música : Cloudbusting - Kate Bush

4 comentários:

  1. Belas histórias nos conta. Continue, continue, que agradecidos estamos. Agradecidos e interessados!

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  2. Aiii o pooonto de bambúú!!... Ehehehehe ;)

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  3. Oa meus olhos observavam sem cor e os meus ouvidos ouviam sons sem alegria. Ao ler esta prosa os meus olhos recuperaram muitas das cores que ainda se observam neste planeta; quanto aos sons veio-me um apetite para ouvi-la na Brigada e nos "Trás-os-Montes". Como agradecimento deixo-lhe uns versitos que se realcionam col alguma da sua prosa.


    NO CAFÉ

    Ver-te aí sentado nesse café
    A pensar em tudo o que não se é
    Lembra a saudade que nos causa dor
    E a dor que se finge por amor
    Quando a verdade nos muda de cor

    Sentas a tua lembrança
    Ao colo duma mudança
    Mas não peças a quem passa
    Um cálice cheio de graça
    Que o olhar que nos resta
    É a flor da dor em festa

    Olha o amor que te fita
    Com essa alma gentil
    Que partiste com ardil
    Vê como ele te medita
    Ledo triste inseguro
    Com saudades do futuro

    O tempo passa contente
    Mas a vida descontente
    Repousa no olhar triste
    De quem ainda resiste
    Porque o amor que lhe assiste
    Finge que a dor não existe

    Ver-te aí sentado nesse café…


    Jorge Mesquita

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  4. Obrigada Carlos Azevedo. É bom "voltar lá atrás" sem papões no quarto escuro!
    Ponto de Bambu como um perfume, XII. Resmas de camisolões!!!!
    Jorge Mesquita, obrigada pelas suas palavras.
    :)

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