sexta-feira, 19 de junho de 2009

Sonho Azul III

Eu pensava que, uma cantora, podia dispor de algum espaço de manobra, no estúdio, porque há dias em que as coisas não correm bem. Com Alhur esse detalhe foi respeitado, mas aqui não. Colocava vozes a metro, sem inspiração, sem alma, tentando afinar e vibrar vários tons acima do que devia... e fora de horas...

No meu diário de estúdio, com a data de 6/12/82, escrevi às 23h: "Meter a voz"...

Acrescento que, a canção em causa, Dá-me a chave do teu coração, que passou A Chave, por alturas da masterização, tinha uma letra horrível e um refrão ainda pior.... blaaaaaaaaaaaagh
O tema original chamava-se Memória. Quando o Pedro decidiu introduzir aquele refrão passou a co-autor. Isso não me incomodou de todo, porque o fez com outras canções mas esta, em particular, doeu....

6 horas depois voltei ao diário: "...e foi o sofrimento mais atroz de toda a minha vida. Foram 6h de repetições atrás de repetições e tudo a sair-me mal. Estava de rastos..." E, aqui, corto uma passagem desnecessária. Para mim foi a gota que fez transbordar o copo. Nada mais a acrescentar sobre esta sessão de estúdio. Os danos foram significativos. Nunca consegui digerir este episódio.




Mas, em contrapartida, lembro-me da fascinação que foi trabalhar com o António Emiliano. A canção Aliança, que tinha o título provisório Vou Morrer (bastante tétrico, diga-se) era uma bonita composição do Pedro. Foi gravada no dia 5 de Janeiro (às 4h30) ao vivo, com respirações e silêncios, os gestos do António sobre as teclas, as minhas olheiras e algum embargo na voz (sempre o cansaço de cantar de madrugada...). Ao 3º take ficou gravada. O Paulo Mestre apareceu no estúdio com bananas e eu fiquei-lhe eternamente agradecida!


Na mesma madrugada gravei as vozes de Tu e Eu entre as 5 e as 8 da manhã...



Com excepção de Em Coimbra Serei Tua (gravada a partir das 17h,do dia 28/11/82) releio a "saga" que foi cantar nas outras sessões, quando a voz e o corpo pediam tréguas:
8/11/82 - Os Sinos (a partir das 23h25): voz principal + 3 vozes de coro (3ª, 5ª, 7ª);
29/11/82 - Sonho Azul (a partir da 1h): voz principal + 4 vozes de coro (3ª, 5ª, 7ª e 8ª da primeira);
9/12/82 - Marítima, pelas tantas da manhã
(aqui já nem tive coragem de encarar o relógio...)
O Hotel Astória foi gravado no dia 23/11 (pelas 22H), no dia 25/11 (pelas 14h) e no dia 26/11 entre as 3 h e as 6h, mas tratava-se de um instrumental....



Enquanto os instrumentos iam sendo gravados eu procurava estar sempre presente nas sessões. Não queria perder o contacto com os músicos. Não podia dispensar todo aquele talento reunido! Queria aprender a crescer como música, a ser mais profissional. Por vezes, não aguentava as noitadas acumuladas e adormecia num canto qualquer.



Todos eles, sem excepção, me deram muitas alegrias.
A amabilidade do Mário Laginha e o talento daquelas mãos esculpidas no piano, ou era o piano que era esculpido naquelas mãos inesquecíveis. O Tomás Pimentel, que fez harmonizações lindíssimas para os metais e mostrou o coração de ouro que é. O Caínha e o Caramelo donos das gargalhadas mais contagiantes de Paço d'Arcos e os cúmplices "responsáveis" pelo sabor a swing, que se escuta no disco. O meu queridíssimo Ricardo Camacho, sempre tão dedicado, tão responsável, tão atento, o sempre-alquimista-de-sons etéreos, que revestem muitas das canções. O Paulo Gonçalves, exótico, espontâneo, intuitivamente pop, sempre bem humorado enquanto guitarrista e como pessoa. O Tózé Almeida, que nunca se impunha a ninguém, de extrema delicadeza e discrição. O António Emiliano, com quem me identifiquei no género de "nomadismo musical" (que esperava vir a desenvolver em projectos futuros). E, claro, o Tó Pinheiro da Silva! As palavras são poucas para adjectivar um dos maiores músicos, com quem tive a honra de trabalhar. É, sem dúvida, uma das melhores pessoas do "meio artístico", que alguma vez conheci. Um talento nato, uma inteligência incomum, o melhor contador de anedotas, um músico virtuoso, uma pessoa pura, uma sensibilidade invulgar, que deu muito de seu neste trabalho.
Eu e o Tó nas gravações de Também Eu (81)
Quando se concluiu o trabalho de estúdio, o ambiente não era o melhor. A minha amizade pelo Pedro estava muito abalada. Não falámos sobre o que se passou, até que deixámos de falar, totalmente, na impossibilidade de estabelecermos um bom diálogo.


Não era, de facto, o meu ano. E o pior estava para vir com a promoção do disco e não só.
*
Música: Não há cu que não dê traque - Banda do Casaco

4 comentários:

  1. Se este "sonho" azul se desdobrar em capítulos que prevejo,vou ter que me manifestar...Ai vou vou.

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  2. Melhor manifestação: não adquirir a versão em cd (a de vinil já desapareceu, acho)e evitar escutar quando passa na rádio llooll ;-)

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  3. Tarde demais! Nunca tive o vinilo, mas seja em que versão for confesso que nunca consegui gostar muito deste disco. Por causa deste diário de gravações interessantíssimo estou a reouvi-lo outra vez (a primeira edição, não a mais recente com o Alhur) e a impressão mantém-se. Agora que sei dos "horrores" (sem aspas?) que a cantora passou percebo porque é que não quis comentar a recente reedição Do Tempo do Vinil!
    Lembro-me quando saiu este disco, da expectativa de ouvir um trabalho duma cantora de que se gosta muito, e esforçar-me muito por gostar, mas não conseguir:-(
    Já lhe aconteceu?
    Mas eu também não sou propriamente um fã da produção musical mainstream dos anos 80, nacional ou internacional...

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  4. Como compreendo, Carlos! Claro que já aconteceu... aconteceu com a minha Kate Bush, que adoro, no tema Brazil.... não consigo gostar. Pronto!
    Bj*

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