segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O medo e o Mestre


Entre 1985 e 1989 vivi entre Coimbra e Sintra. Comecei a compor outras músicas e fiz algumas incursões que marcaram a minha rota desigual. Uma participação no Festival RTP da Canção com um tema de Rui Veloso e Carlos Tê - Jura (que nunca gravei) - e o convite que me chegou num telefonema do Júlio Pereira para participar no último trabalho de Zeca Afonso, Galinhas do Mato.
Já tinha vivido a experiência em Fura Fura (1979) quando os Trovante foram convidados a colaborar. Cantei a segunda voz n' As Sete Mulheres do Minho e lembro bem a importância que teve para a minha vida aqueles dias passados no estúdio Arnaldo Trindade com o Zeca e os meus colegas de andanças Luís Represas, João Gil, Manuel Faria, Artur Costa e João Nuno Represas.

O Zeca era uma pessoa especialíssima. Um génio da música e das palavras (daí a minha "luta" para que cantem SEMPRE em português e não aceitar que o façam numa língua que não esta. Sobre este ponto hei-de explicar-me melhor, não hoje) muito distraído (como os génios são), com um humor inigualável e uma coerência de que tenho muitas saudades.

O avanço progressivo da sua doença não o impediu de dirigir os ensaios e as sessões de estúdio. E de que maneira! Nunca conheci ninguém com tanta força e humor. Ele animava-nos com anedotas e peripécias que tinha vivido. Deitado na cama acompanhava os ensaios e escutava as ideias dos arranjos do Júlio Pereira. Num desses dias revelou que Benditos (a canção que escolheu para eu cantar) era o seu testamento. De repente fiquei insegura e apavorada. Apercebi-me da enorme responsabilidade. Eu cantar o testamento daquele homem? do Mestre? Não estava à altura. Não estava. Disse-o repetidamente ao Júlio, que tratava de desdramatizar o medo tranquilizando-me com ensaios extra e muita paciência. Mas o que é certo é que crescia de dia para dia sob várias formas: rouquidão, insónia, acessos de tosse, vontade de chorar e até raiva de mim. Cresceu e tomou conta de tudo, o que revelou uma imensa falta de profissionalismo da minha parte... Eu não estava no meu melhor. Tinha problemas com a realidade de certas dimensões universais e a minha pequenez. Um minúsculo granículo de areia nesta imensidão...

Infelizmente, com as mudanças de casa, perdi alguns dos meus diários, o de 1985 incluído. Conto com a memória parcial. Os pormenores que precisava para completar a estória (por serem mais precisos) perderam-se.

No dia em que gravei Benditos deu-se o apagão vocal. O Zeca com o seu sorriso rasgado dizia-me da cabine de som: calma, não estás a fazer nenhum exame!
Repeti não sei quantos takes. Cada um mais horrivel que o outro. Olhava para o Júlio desesperada e uma das vezes pedi-lhe: deixa-me gravar noutro dia, hoje não. Não consigo.
Saí do estúdio com uma vontade enorme de me desintegrar. Achei-me um monstro por estar a desiludir o Zeca. Desiludi todos. Fiquei mesmo muito zangada comigo. Muito.

Galinhas do Mato conta com interpretações magníficas de Helena Vieira (Tu Gitana), Luís Represas (Agora), Janita (Moda do Entrudo, Tarkovsky, Alegria da Criação), José Mário Branco (Década de Salomé) e do próprio Zeca (Escandinávia Bar). Foi gravado pelo mítico Zé Fortes e Rui Novais no Angel Estúdios.

Talvez um dia pegue na guitarra e cante Benditos na maior entrega que descobrir no fundo de mim.

Zeca Afonso faria ontem 80 anos.
*
Música: Por trás daquela janela - Zeca Afonso

8 comentários:

  1. Penso compreender a sua decisão...
    (Se me é possível tomar tal liberdade,
    e transpôr a matéria.)

    O "testamento" não poderia ter sido melhor entregue. *

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  2. A BELEZA DE UMA EMOÇÃO


    Depois de ler a sua prosa confessional, regressei três vezes ao álbum “Galinhas do Mato”. Como não podia deixar de ser, ouvi com muito cuidado a sua interpretação do “Benditos”. É evidente que há por ali muita emoção. Mas nem sempre as emoções são exemplos de profissionalismo negativo. A canção é uma despedida e a Né Ladeiras comprova isso mesmo. Aliás, quer-me parecer que todo o álbum é mais emocional de que um trabalho de gravação minucioso de estúdio. Naturalmente, tenho a certeza que todos sentiam, cada um à sua maneira, o que se passava com o José Afonso. Na minha opinião, cada uma das composições ouvidas no álbum, é como se fossem documentos sonoros de um abraço comovido de uma despedida. A Né acha que é possível substituir a beleza de uma emoção pela frieza de uma gravação de inúmeros takes?

    Jorge Brasil Mesquita

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  3. Jorge, a sua pergunta fez-me pensar.
    Acho que o problema foi a voz vestir-se de medo. Medo não é o lado solar nem lunar de uma emoção. Esta fica contraída, parada e apática. O medo nunca expõe demasiado uma emoção apesar de também o ser. O medo não é arrojado, não deixa a tempestade desabar, não possui intensidade. É disso que me lembro. Foi isso que tentei afugentar e não consegui...
    Um abraço

    XII, imaginas esta canção pela Elis Regina, por exemplo? Uma constelação imensa para o Mestre. Ora eu...
    Beijocas

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  4. Sim consigo imaginar a maravilhosa Elis...
    Mas talvez o "Mestre" não quisesse apenas uma constelação,mas o Universo inteiro.
    Uma Alma,ponte,entre a terra e o céu...

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  5. SOBRE O MEDO


    O medo não está na voz, está na emoção que se esconde, ainda que inconscientemente, o que priva a voz de libertar todos os sentimentos que as palavras da composição transmitem. A voz é apenas o veículo da emoção que se amedronta, perante o medo de uma impossibilidade. Será que estarei a ser claro e perceptível pela forma como me tentei explicar?


    Jorge Brasil Mesquita

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  6. O Zeca, como tu dizes era uma pessoa especial,e sabia exatamente o que queria. Quando te escolheu para delegar em ti o "testamento" não estava à procura duma voz especialíssima mas de uma Alma especial que transmitisse o sentimento que Este desejava.
    De que serve uma boa voz sem emoção?
    Não passa de um simples instrumento bem utilizado.
    Embora saibas, mas não se pode esquecer que a musica é Arte e como tal não está na ponta dos dedos ou em qualquer outra parte física do corpo, mas sim "dentro" na ALMA!!!
    Fizeste um bom trabalho,com muita emoção...
    Parabens!!!

    Beijinhos

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  7. Passei aqui apenas para lhe dar os parabéns. Que venham muitos mais! Um abraço,
    Carlos Azevedo

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