Mantém sempre a pose. É de rapina, mas canta como o melro. Assim poderá chegar mais perto. Elas são lerdas embora um pouco rápidas a fugir e até se darem conta das garras implacáveis, quando já é tarde de mais, ficam amochadas naquele mastigar nervoso sem pensar em nada a não ser muito de vez em quando em outonos de cristal.
Vai divagando o olhar em torno dela, isso é sedução (pensa), fá-la-à reclinar-se,(tem a certeza) desmaiar de amor (touché!) e na curva sem fim do seu voo picado vai enlaçá-la como uma serpente nunca esquecendo que é um Grifo. Tem de a atacar com precisão e sem misericórdia. Os Grifos não hesitam, nunca se comovem, exímios predadores sob penas sedosas. É matar, mas com paixão, claro. Se o fizerem com instinto cirúrgico, não se darão conta do pranto sonâmbulo que os incomoda.
E o Grifo depois da instrução faz-se à caça. Suspenso no ar ascendente, asas arqueadas, voa em círculo pelas encostas. Avista a Lebre no lusco-fusco acabada de sair do seu abrigo. A camuflagem um pouco ineficiente, ela meio distraída, ainda noviça, apetecível, analisa o Grifo, condições ideais para avançar, decide com o olhar experiente.
Num voo lento cerca-a e o rumor suave das suas asas desperta a atenção da Lebre. Surte o efeito que ele já esperava. Aos sinais de alerta juntam-se luzinhas de fascinação e a Lebre espantada acha que nunca viu nada igual. O coração a mil diz "toca", a cabeça a cem grita "foge". O Grifo estende o pescoço e dirige-se-lhe colocando a voz no registo certo:
Boa noite Lebre. Sinto-me atraído por ti.
O silêncio da Lebre fá-lo pensar, por uma fracção de segundos, que ia ter algum trabalho. Reviu o curso intensivo de Roger Vailland e insiste:
Não digas nada, sente como eu sinto – dá dois passos em frente, e antes que ela atinja os seus gloriosos 72 km por hora retoma o seu dom palavroso.
Eu queria que te sentisses possuída por felicidade e amada em contentamento. Eu sei que a vida é assim, cheia de falhas, de momentos em que se odeia o amor. Sou um Grifo, não o nego, a minha existência é um desassossego porque vivo num contexto de vida e morte, mas quando olhares para mim não vejas a imagem encarnada, com rabo comprido, pés de bode, um par de cornos e olhos flamejantes. Sou um Grifo e é o que basta. Um Grifo que procura a Lebre certa. Não nego que tu despertas o que de mais turbulento e anárquico existe na minha libido… e esta época é muito má para mim, a primavera... coup de foudre, sabes o que é? Achas má ideia telefonar-te antes de adormeceres? – fez um som parecido com uma corda de violino mal pisada e aguardou muito confiante.
¥ġŭάϑ бдфϕ Ϡ ράΐψώᾗ ᾼйзж *őΐΥθΰξϰђἳ •† † † †• - declara a Lebre
Um pouco desconsertado com estes símbolos que não sabe ler, arrisca:
Tu tens um verão antecipado cheio de sol quente e luminoso e eu seco com falta de tudo. É o que é… estou para aqui a depenar-me como nunca o fiz, chama-me maluco então... mas não acreditas que à primeira vista se pode reconhecer um pedaço de nós? Não me dizes o que achas, se é boa ou má ideia telefonar-te … gostava de saber do teu perfume almiscarado … dos medos que te rondam …Gostava de fazer parte do teu destino.
A Lebre ainda no estado toca-e-foge esforça-se por recuperar algum discernimento linguístico, porque não há coisa pior do que os encontros equivocados em jeito de dialectos indecifráveis. Suspirou e com os olhos abertos para o escuro que tinha caído, pensa:
Ando por esta serra há pouco tempo. Lá longe onde acaba o escuro vejo as luzes das povoações, chão de estrelas como se tivessem caído todas do céu. Ele fala como quisesse ser eu, como se acrescentasse o que não vem de mim. Que sabe ele do espaço que me sufoca entre a espada e a alma? Vive no cio farpado a pensar que é um ritual de solstícios e eu não tenho garras sob penas.
Ela vai querer ir ao cume – inflamou-se o ignorante Grifo pensante - está quase... quase... e eu levo-a, claro, porque o destino não tem moral!
*
Música: António Variações – Canção do Engate ( Dar e Receber, 1984)
Música: António Variações – Canção do Engate ( Dar e Receber, 1984)
[Joyeux anniversaire, Jeanne (Moreau)!
ResponderEliminar«Each man kills the thing he loves»...]
«(...)
Tu continuas à espera
Do melhor que já não vem
E a esperanca foi encontrada
Antes de ti por alguém
E eu sou melhor que nada
(...)»
(o nosso saudoso António)
«Un roman commence par un coup de dés.» (Roger Vailland)
Por ora, falta-me «discernimento linguístico» (iluminam-me mais «luzinhas de fascinação» como ¥ġŭάϑ бдфϕ Ϡ ράΐψώᾗ ᾼйзж *őΐΥθΰξϰђἳ •† † † †• ) para descrever o humano, demasiado humano «encontro equivocado» («coup de foudre» será força de expressão?) entre o Grifo — «enigma» misto de águia e de leão (lagarto, lagarto, lagarto!) — e a lesta (chamem-lhe lerda, que ela agradece) Lebre (chamariz & negaça? ‘tadinho do «cio farpado» do Rrromeu do melrrro!) que lhe levanta sérios problemas de fundo e de fôlego.
Fabulosa fábula, cuja moral, como a ironia do destino, me deixou no «estado toca-e-foge»!
Boa noite, Né.
AURORA (SUNRISE: A SONG OF TWO HUMANS, de Murnau, com Janet Gaynor e – sob o signo da Lua no fotograma apresentado acima – George O’Brien) é um filme lindo de morrer.
Nem de propósito (fico supersticioso com gralhas destas): no comentário publicado às 19 e 14, falta a cedilha de «esperança».
ResponderEliminarPelo lapso, peço ― e não «peco» ― desculpa.
Bons sonhos, Né, XII e demais tripulantes da nave.
:) Muito bom mesmo.Com efeito,dá-me para rir!Um riso romântico de tramado.Que cena!!...
ResponderEliminarConsigo sentir perfeitamente os papeis
in(vertidos).
Coup de foudre?!
Claaaro que sabe.
Ai a lebre armada em raposa!...
Beijos*
heheheheehh :p
ResponderEliminarAurora foi exibida a semana passada no Teatro Virgínia :)
ResponderEliminar"Musicado por uma orquestra de músicos excelentes"! Fui cuscar à net :))
ResponderEliminar:))
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