Foto da loba Morena
Lembras-te morena do nevoeiro cerrado que se erguia do Sabor e nós os dois escondidos nos lameiros? Ficávamos com os ossos gelados, o hálito de neve, à procura de um refúgio de trevos. Havia alturas em que o feno era um colchão tranquilo, quando o tempo do calor se amotinava, os bois teimosos, as vacas sem vontade, o amarelo sobre os pousios de cereais e eu, guerreiro e irresoluto, a exibir-me, e tu a dormir na colina, mas essas eram alturas em que a gente procurava o que quisesse no coração, desapeados de fome.
As distâncias desafiavam-nos através dos montes e dos bosques, aguardavam impacientes, desenhavam trilhos silenciosos, precisavam de ti e de mim com urgência, faziam arruaças a peito descoberto, evocavam horizontes e céus para a grande corrida. Viver era uma febre. Só os elementos entendiam a nossa infância e a luz real dos teus olhos. Os teus olhos, morena, por eles me tornei essência e infinito. O meu reino de onor e rocha não ficou isento ao acaso. Tu e eu fundidos na carne frágil. Risos e choros, silêncios e vozes de oração pelos caminhos assombrosos do meu reino. Também teu.
Apesar dos fogos insensatos que nos cercaram fomos reais no corredor da poesia. A nossa estória não se fez no abstracto, teve alegrias e suplícios, alvoroços e sequelas e, como nos poemas, girou à volta de destinos travados. O teu e o meu em um só. Vimos nascer luas irreais, sentimos no corpo a chuva desasossegada, acendemos o ar nocturno com o teu olhar incandescente, perseguimos na garupa da minha força o corço inconstante. Depois distraías-te no meio dos sardoais, mas eu não me importava. Continuava na corrida enquanto descobrias novas fragrâncias nas estevas e cravinas. Dizias que preferias esse lirismo a ter de passar por armadilhas. Quantas vezes o veneno e a matança. E o silêncio a ganhar vantagem sobre os nossos pedaços. Dizias que estávamos a perder o jeito de amanhecer e os teus olhos de topázio ficaram turvos. Fomos sobrando entre pegadas fundas na lama e ramos que nos murmuravam sons agoirentos. Eu olhava para o chão com medo de te perder. Tu fixavas os tartaranhões azuis que lembravam a eternidade percorrida.
Deste lado do cercado farejo as brisas onde te deixaste. Vigio auroras e crepúsculos, não vás precisar de mim. Oiço os teus movimentos voltear a chegada, mas o azul ainda é longe. Sinto-te pela voz que ecoa como restos de estrelas a riscar a noite escura. Às vezes penso que são os teus olhos de topázio a descer as serranias ao encontro da minha impaciência, como nas faroladas que perseguiam o nosso cansaço. Hoje sinto-me enfastiado de tanto breu. Os caminhos de volta foram apagados e o tempo esqueceu-se da minha saudade. Se eu fechar os olhos, as asas dos tartaranhões levam-me pelas arribas. Sabor índigo, lameiros de cinza, dois topázios oblíquos, uma alcateia, o céu contigo.
Morena e Sândalo vieram de Montezinho para o CRLI. Sândalo, o líder nato e muito assertivo para com os membros da alcateia, passava todo o tempo com a sua companheira fazendo rondas pelo cercado. Verificava vezes sem conta as possíveis falhas na vedação. Morena, vigorosa e muito resistente era muito feliz na companhia de Sândalo. Um dia, por questões de saúde, teve de ser retirada da alcateia e colocada noutro cercado. O uivo de ambos tornou-se profundo e longo. Inconsolável.
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Música : Todo Este Céu, Fausto (Crónicas da Terra Ardente, 1994)
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:( ÁAAaauÚUUUUUUuuuuu...
ResponderEliminar«Risos e choros», «alegrias e suplícios, alvoroços e sequelas», «estevas e cravinas», «auroras e crepúsculos», «horizontes e céus».
ResponderEliminarChuva oblíqua, dia agónico, leitura na diagonal?
«Hoje sinto-me enfastiado de tanto breu» — também eu.
Gosto disto na tua voz. Aliás, já o escrevi há uns tempos aqui: http://thecatscats.blogspot.com/2009/06/coisas-que-acalmam.html#links
ResponderEliminarMorena e Sândalo foram um casal uno, tenho a certeza. Partiram com pouco espaço de tempo entre eles.
ResponderEliminarÂnimo Hélder! depois do breu há uma luz, que também existe antes dele (do breu).
Obrigada Carlos, é um tema que gosto em particular, o misticismo do Fausto é profundo.
Bj*
A Morena diluí-me o coração
ResponderEliminarna alma,caramba...
(Ai esta foto com efeitos,especiais...)
Muito obrigado, Né, pelo incentivo.
ResponderEliminarAndamos bem necessitados de ânimo para enfrentar estes tempos difíceis.
Pensemos, em particular, na população haitiana, que precisa urgentemente de tudo — muito, muito mais do que nós.
Todas as preces para o Haiti, Hélder e em direcção ao coração de todos os injustiçados e sofredores.
ResponderEliminarA Morena era a minha "menina" adoptada que me abraçava. Tenho tantas saudades dela, caramba!
Bj*