sexta-feira, 19 de março de 2010

Os pregos do Alberto das Madeiras

Lydia Guevara numa campanha da PETA
As reuniões eram convocadas com urgência. Esta, em particular, necessitava da comparência de todos os militantes e para isso havia que ir avisar de porta em porta. Apertados numa sede que ficou pequena para tantos de nós ouvimos o desenvolvimento das notícias. Mário Soares, Salgado Zenha e Almeida Santos haviam-se demitido do IV Governo Provisório seguidos pelo PSD. A gota de água que encheu o copo das divergências entre Cunhal e Soares deveu-se à  situação do Jornal República.

Este jornal destacou-se pela luta contra o regime do Estado Novo, e nos seus quadros administrativos bem como na sua redacção havia ilustres da Maçonaria e do PS. Quando a direcção do jornal tenta admitir mais dois redactores afectos ao PS é convocada uma RGT em que a medida de parar a tiragem para o dia seguinte é aprovada. A seguir sai um artigo contra a posição dos trabalhadores da RTP conotados com o PCP. Depois é dada uma cobertura excessiva à delegação do PCP M-L em visita à China, que foi visto como um gesto político-partidário e uma provocação, já que a dita delegação pertencia ao principal opositor do PCP… No inicio do ano tinha havido polémica sobre a unidade sindical que o PS combatia em nome da constituição livre dos sindicatos.

Apesar da percentagem de votos muito significativa que o PS gozava (cerca de 38%) era nos órgãos de informação e nas manifestações, quase diárias, que o PCP mostrava a sua força. A divisão estava instalada.

E o que pretendem fazer? – perguntou a minha amiga.

Temos de estar muito unidos – respondi cheia de convicção - Precisamos de todas as pessoas para impedir a desgraça. Neste momento é possível acontecer tudo…

O que vejo – agoirou - é uma luta de capoeira. O que fizeram de África não chegou, vêm para aqui com a mesma cena. Tribos que não se entendem e dão cabo da vida de quem quer ter uma. Não importa o quê, nem quem, destruir é palavra de ordem. Quando é que esta gente cresce? - estava fora de si. Os olhos vermelhos de raiva fixavam as escadas monumentais, as que teria de subir se um dia fosse para a Universidade - Milhares de pessoas ficaram sem nada. Ninguém quer saber como nos sentimos, como sobrevivemos, no meu caso como é que uma adolescente se faz à vida, percebes?

Percebia, mas as vozes na sede comentavam os dois comícios que a direcção do PS programara, um no Porto, outro em Lisboa. Camaradas, "É preciso cortar o passo à reacção! É necessário levantar barragens para impedir uma marcha sobre Lisboa."

Mostrei à minha amiga zangada o Diário de Notícias e ela leu: "Povo e militares nas barricadas em defesa da Revolução".

É uma possibilidade de agarrares na tua vida e lutar por ela - sugeri.

Ohhh ninguém entende. Tu não entendes. Vocês estão a ser carne para canhão. Morrer por uma causa que nem é vossa, é DELES!!! – disparou.

O que estás a dizer? Isto tem a ver com todos. EU faço parte desse "todos" e não quero nem vou ficar de fora! Não sei se és tu que não entendes. Virar costas numa altura destas? - agora era eu que disparava.

Dirigi-me para a entrada da sede onde estavam a ser dadas instruções: O que vamos fazer, camaradas, é levantar uma barricada a seguir à ponte de Santa Clara. Quando vierem as camionetas com os excursionistas que o bochechas mandou lá do norte, chegam aqui e não avançam mais. É preciso uma brigada para ir comprar cavilhas. Vamos espalhar cavilhas na estrada. Voluntariei-me para as ir buscar. Mesmo ao lado de casa dos meus pais a drogaria Alberto das Madeiras vendia todo o tipo de pregos e parafusos.

Santa ingenuidade… - ouvi-a a gozar quando me viu sair da loja - e achas que espalhando os pregos pelo chão como quem semeia trigo conseguem furar algum pneu? Não sabem que é preciso primeiro pregá-los numa tábua e virá-los para cima? - continuou meio irritada meio a gozar.

Estanquei já desesperada, os braços a segurar pacotes de papel pardo, o carro à espera, a contagem decrescente para a passagem dos manifestantes… parecia o pronuncio do próprio flop...

Ninguém pensou nisso? – insistiu – qual foi o manual que não leram?- desatou aquelas gargalhadas em cascata, que no momento eram dispensáveis, mas sem dar o flanco respondi-lhe:

Não há tempo Paula, trouxemos todos os pregos que o Alberto das Madeiras tinha. Algum resultado há-de dar!
 
Revolution, Beatles (White Album, 1968)

3 comentários:

  1. :) Passado ou futuro?!...

    O Alberto das Madeiras é um bom exemplo do que de maravilhoso se deixa morrer por Cá.Drogarias,mercearias,retrosarias,gentes e sitios com estórias,portas abertas ao encanto e ao encontro de mil e uma coisa.Que saudade sinto do que vejo perdido...felizmente onde vivo,ainda os vou tendo por perto(coisa rara nos dias que correm).Desejo poder ter esse direito para sempre.E como direito que é,é causa tão legitima quanto tantas outras...Não ponho pregos na estrada (se os pusesse com certeza que seriam pregados em tábuas! :)) ,mas não encho os bolsos a quem ergue catedrais de ilusão,para os vender!!
    Beijo *

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  2. Um certo passado que podia ter futuro, mas não teve.
    Bj*

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  3. Mas vai ter,Maria.Mais tarde ou mais cedo acabará por acontecer.
    Assim o espero.
    Com todas as consequências que isso acarreta...
    A renovação nunca foi processo tranquilo. (Pergunte-se à Natureza.)

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