Fotografia de Tim Flach
Uma viola encostada à cadeira, um mapa desdobrado no chão. Tantos caminhos à espera de datas imprescindíveis, e eu aqui, atrás da vidraça, a desenhar teias rendadas no vapor da água. Rascunhos de chuva caem sobre o baloiço, que em dias melhores faz de Pégaso. Nessas alturas sou toda asas. Entre o céu e o chão, olhos fechados, cabeça para trás, cabelos entrelaçados nas crinas do meu cavalo, sonhos tão altos, voos antecipados, a pensar que o amor é como o espaço onde Deus vive. O amor que desconheço e já marcado em mim sugere-me a porta que abro sem reservas. Por isso existiram poetas e missionários - penso enquanto dou voltas e voltas - cantores e resistentes.
No princípio adivinhamos as variações que se debatem, descobrimos que a intensidade do sol pode ser a mesma das ferventes cores de Outono. Não quero invernar para sempre, como a tia-avó Guilhermina sem nascentes nem florações. Não quero ser roubada na atenção dos olhos chorosos como os da tia Milú. O amor não pode ficar enterrado no fundo da boca, labirinto a espreitar no fim dos dias, acabado em dor, como o da minha tia Zira.
Posso ser uma soma de coincidências e desastres, mas hei-de renascer em cada vida. Não vou ficar sob a tortura do disfarce, antes ser vento e desalinho, ir mais além do que puder, ser a água que bate nos vidros, vibrar no choque contra as trevas.
O telefone toca ao longe, ouço passos nas escadas, alguém me chama. Dizem-me que estão a convocar todos os militantes para fazer o ponto da situação. Os pára-quedistas de Tancos já ocuparam o comando da 1.ª Região Aérea, em Monsanto; as tropas do RALIS ocuparam posições nos acessos à auto-estrada do Norte e no Aeroporto da Portela; militares da Escola Prática de Administração Militar ocuparam os estúdios da RTP no Lumiar. Já saiu um comunicado do EMGFA a avisar que usará da força. Desço pelo corrimão, pego na mochila marroquina, olho para o mapa, não há tempo para isso. Respondo o essencial quando me perguntam para onde vou. Sei lá o que vai acontecer. Se calhar todos para um estádio, como no Chile… volto atrás abro a gaveta dos colares e anéis, lá está a cruz da minha 1ª comunhão. Uso-a muitas vezes. Noto os sorrisos ao canto da boca dos que me avaliam a preto e branco. Rio-me mais do que todos juntos pela falta do rótulo que desejam colar.
Saio de casa, passadas rápidas, a rever os episódios anteriores. Como se chegou a este estado? Estamos à beira de uma crise muito grave. Assim que cheguei à sede informaram-nos que o Soares tinha ido para o Porto. Mas a que propósito? Querem conquistar a “comuna de Lisboa” com os apoios do norte. Estão à espera de violência e sangue. Querem ilegalizar o Partido. Querem que a Assembleia se torne num Parlamento para escolherem um governo e fazer leis. Querem a divisão entre Norte e Sul. Querem… Não sei o que querem. Para quando o futuro e se deixam de teatros e conspirações? Que perda de tempo e de gente.
Penso na minha amiga Paula que foi embora. Não aguentou a falta de promessas cumpridas, nem o epíteto com que era premiada fosse ela himba ou portuguesa, nem a falta de condições para olhar por si, nem o tombo da porta férrea, que nunca mais iria atravessar. Resolveu numa manhã de Outubro não voltar às aulas, nem dormir outras tantas noites na pensão da baixa. Esperou pelo Sud- Express, que passava em Coimbra B ao fim da tarde e rumou para norte. Holanda ou Suécia, só chuva e neve, porque deprimir ao sol é muito pior. Mágoa por mágoa eu quero que o frio congele a porta que nunca bate, assim não se nota tanto a falta de truques bem feitos – disse-me quando se despediu. Depois acenou debruçada na janela e mandou um beijo para o ar.
“Eu hei-de ir no voo de Pégaso – gritei da plataforma da estação – “para onde o tempo seja intenso como uma estrela limpa pelo fogo”.
No princípio adivinhamos as variações que se debatem, descobrimos que a intensidade do sol pode ser a mesma das ferventes cores de Outono. Não quero invernar para sempre, como a tia-avó Guilhermina sem nascentes nem florações. Não quero ser roubada na atenção dos olhos chorosos como os da tia Milú. O amor não pode ficar enterrado no fundo da boca, labirinto a espreitar no fim dos dias, acabado em dor, como o da minha tia Zira.
Posso ser uma soma de coincidências e desastres, mas hei-de renascer em cada vida. Não vou ficar sob a tortura do disfarce, antes ser vento e desalinho, ir mais além do que puder, ser a água que bate nos vidros, vibrar no choque contra as trevas.
O telefone toca ao longe, ouço passos nas escadas, alguém me chama. Dizem-me que estão a convocar todos os militantes para fazer o ponto da situação. Os pára-quedistas de Tancos já ocuparam o comando da 1.ª Região Aérea, em Monsanto; as tropas do RALIS ocuparam posições nos acessos à auto-estrada do Norte e no Aeroporto da Portela; militares da Escola Prática de Administração Militar ocuparam os estúdios da RTP no Lumiar. Já saiu um comunicado do EMGFA a avisar que usará da força. Desço pelo corrimão, pego na mochila marroquina, olho para o mapa, não há tempo para isso. Respondo o essencial quando me perguntam para onde vou. Sei lá o que vai acontecer. Se calhar todos para um estádio, como no Chile… volto atrás abro a gaveta dos colares e anéis, lá está a cruz da minha 1ª comunhão. Uso-a muitas vezes. Noto os sorrisos ao canto da boca dos que me avaliam a preto e branco. Rio-me mais do que todos juntos pela falta do rótulo que desejam colar.
Saio de casa, passadas rápidas, a rever os episódios anteriores. Como se chegou a este estado? Estamos à beira de uma crise muito grave. Assim que cheguei à sede informaram-nos que o Soares tinha ido para o Porto. Mas a que propósito? Querem conquistar a “comuna de Lisboa” com os apoios do norte. Estão à espera de violência e sangue. Querem ilegalizar o Partido. Querem que a Assembleia se torne num Parlamento para escolherem um governo e fazer leis. Querem a divisão entre Norte e Sul. Querem… Não sei o que querem. Para quando o futuro e se deixam de teatros e conspirações? Que perda de tempo e de gente.
Penso na minha amiga Paula que foi embora. Não aguentou a falta de promessas cumpridas, nem o epíteto com que era premiada fosse ela himba ou portuguesa, nem a falta de condições para olhar por si, nem o tombo da porta férrea, que nunca mais iria atravessar. Resolveu numa manhã de Outubro não voltar às aulas, nem dormir outras tantas noites na pensão da baixa. Esperou pelo Sud- Express, que passava em Coimbra B ao fim da tarde e rumou para norte. Holanda ou Suécia, só chuva e neve, porque deprimir ao sol é muito pior. Mágoa por mágoa eu quero que o frio congele a porta que nunca bate, assim não se nota tanto a falta de truques bem feitos – disse-me quando se despediu. Depois acenou debruçada na janela e mandou um beijo para o ar.
“Eu hei-de ir no voo de Pégaso – gritei da plataforma da estação – “para onde o tempo seja intenso como uma estrela limpa pelo fogo”.
Fotografia de Tim Flach
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Eu vim de longe, eu vou p’ra longe, José Mário Branco (Ser Solidário, 1982)
Eu vim de longe, eu vou p’ra longe, José Mário Branco (Ser Solidário, 1982)
Vais para Hélicon?... Passa na Hipocrene,a àgua é maravilhosa... Beijo*
ResponderEliminarVou!!!!! E fico de molho por uns tempos :))
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