sexta-feira, 9 de abril de 2010

A estação de Pégaso

 

Fotografia de Tim Flach

Uma viola encostada à cadeira, um mapa desdobrado no chão. Tantos caminhos à espera de datas imprescindíveis, e eu aqui, atrás da vidraça, a desenhar teias rendadas no vapor da água. Rascunhos de chuva caem sobre o baloiço, que em dias melhores faz de Pégaso. Nessas alturas sou toda asas. Entre o céu e o chão, olhos fechados, cabeça para trás, cabelos entrelaçados nas crinas do meu cavalo, sonhos tão altos, voos antecipados, a pensar que o amor é como o espaço onde Deus vive. O amor que desconheço e já marcado em mim sugere-me a porta que abro sem reservas. Por isso existiram poetas e missionários - penso enquanto dou voltas e voltas - cantores e resistentes.

No princípio adivinhamos as variações que se debatem, descobrimos que a intensidade do sol pode ser a mesma das ferventes cores de Outono. Não quero invernar para sempre, como a tia-avó Guilhermina sem nascentes nem florações. Não quero ser roubada na atenção dos olhos chorosos como os da tia Milú. O amor não pode ficar enterrado no fundo da boca, labirinto a espreitar no fim dos dias, acabado em dor, como o da minha tia Zira.
Posso ser uma soma de coincidências e desastres, mas hei-de renascer em cada vida. Não vou ficar sob a tortura do disfarce, antes ser vento e desalinho, ir mais além do que puder, ser a água que bate nos vidros, vibrar no choque contra as trevas.

O telefone toca ao longe, ouço passos nas escadas, alguém me chama. Dizem-me que estão a convocar todos os militantes para fazer o ponto da situação. Os pára-quedistas de Tancos já ocuparam o comando da 1.ª Região Aérea, em Monsanto; as tropas do RALIS ocuparam posições nos acessos à auto-estrada do Norte e no Aeroporto da Portela; militares da Escola Prática de Administração Militar ocuparam os estúdios da RTP no Lumiar. Já saiu um comunicado do EMGFA a avisar que usará da força. Desço pelo corrimão, pego na mochila marroquina, olho para o mapa, não há tempo para isso. Respondo o essencial quando me perguntam para onde vou. Sei lá o que vai acontecer. Se calhar todos para um estádio, como no Chile… volto atrás abro a gaveta dos colares e anéis, lá está a cruz da minha 1ª comunhão. Uso-a muitas vezes. Noto os sorrisos ao canto da boca dos que me avaliam a preto e branco. Rio-me mais do que todos juntos pela falta do rótulo que desejam colar.

Saio de casa, passadas rápidas, a rever os episódios anteriores. Como se chegou a este estado? Estamos à beira de uma crise muito grave. Assim que cheguei à sede informaram-nos que o Soares tinha ido para o Porto. Mas a que propósito? Querem conquistar a “comuna de Lisboa” com os apoios do norte. Estão à espera de violência e sangue. Querem ilegalizar o Partido. Querem que a Assembleia se torne num Parlamento para escolherem um governo e fazer leis. Querem a divisão entre Norte e Sul. Querem… Não sei o que querem. Para quando o futuro e se deixam de teatros e conspirações? Que perda de tempo e de gente.

Penso na minha amiga Paula que foi embora. Não aguentou a falta de promessas cumpridas, nem o epíteto com que era premiada fosse ela himba ou portuguesa, nem a falta de condições para olhar por si, nem o tombo da porta férrea, que nunca mais iria atravessar. Resolveu numa manhã de Outubro não voltar às aulas, nem dormir outras tantas noites na pensão da baixa. Esperou pelo Sud- Express, que passava em Coimbra B ao fim da tarde e rumou para norte. Holanda ou Suécia, só chuva e neve, porque deprimir ao sol é muito pior. Mágoa por mágoa eu quero que o frio congele a porta que nunca bate, assim não se nota tanto a falta de truques bem feitos – disse-me quando se despediu. Depois acenou  debruçada na janela e mandou um beijo para o ar.
“Eu hei-de ir no voo de Pégaso – gritei da plataforma da estação – “para onde o tempo seja intenso como uma estrela limpa pelo fogo”.

 

Fotografia de Tim Flach
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Eu vim de longe, eu vou p’ra longe, José Mário Branco (Ser Solidário, 1982)

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