quinta-feira, 15 de julho de 2010

Passagem das Horas

(...)

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.




(...)

Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.





Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.





Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há-de ser de mim? Que há-de ser de mim?







in Passagem das Horas, Álvaro de Campos

3 comentários:

  1. Sentir tudo de todas as maneiras,
    Viver tudo de todos os lados,
    Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
    Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
    Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
    ...
    Multipliquei-me, para me sentir,
    Para me sentir, precisei sentir tudo,
    Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
    Despi-me, entreguei-me,
    E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.
    ...
    Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,
    Orgia intelectual de sentir a vida!
    ...
    Ho-ho-ho-ho-ho!...
    Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo
    Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado,
    Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
    He-la-ho-ho ... Helahoho ...

    Beijos.
    (Deste-me uma vontade louca de rasgar os calendários e relógios do mundo.Há horas..(?)

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