domingo, 1 de agosto de 2010

Matriz


Há tempo para uma história num tempo que limpa todas as marcas. Séculos de encontros na vastidão interminável ainda ao meu alcance, e possível, tão possível como a migração das aves e o curso dos rios.

Se não adormeceres, juro que canto todo o desencanto preso às asas indomáveis, mesmo que não saiba a letra de cor. Serei tão ousada e leve que não vais sentir o meu peso na tua memória. E na minha ficará guardado, para sempre, o teu sono esquecido.

Se me olhares e não reconheceres o fogo e os gestos dos pequenos lugares, se não te lembrares do trevo e do rio presentes, do perfume do linho que vestiu o fim, se olhares para longe de mim e adormeceres, mesmo assim, regressarei à verdade que não conto a ninguém.

As dúvidas e perplexidades que se colam à pele são como panteras que se preparam para cair da nuvem mais alta. Diante da poesia e  dos seus sortilégios imponderáveis atiram-se de uma altura vertiginosa, salvando-se apenas a recordação, asas de várias manhãs. Atravessam sinais incandescentes até chegar à planície branca onde procuram o teu cabelo sobre a túnica; uma trança longa e ruiva debruçada  sobre o teu cabelo solto que se agita em rituais de lua e mistério, então como agora.

Por dentro da alma das árvores braços e segredos perfeitos preparam-se para nascer. Todos os mistérios perdidos e remotos adquirem a tua forma. O mundo tem que fazer um outro mundo mais inventado do que está, pela palavra, e é preciso não esquecer o abraço que depois de tudo leva a dor.

No meu disfarce temporal peço o amor de outras vezes celebrado, ainda com o gosto  do deserto, para nos transformar nestes dias perdidos e achados. Não quero que me ofereças sombra. Saberei construir as necessárias para me resguardar e logo as abandonar em qualquer rota de areia e dunas. Basta-me que apontes uma nuvem e confiar-lhe-ei as minhas memórias feitas pássaros de paz que voarão para ti até se perderem  num olhar qualquer. Então como agora.

A lentidão junto ao rio dos juncos, vestígios de sonhos que não se contam a ninguém, tudo no azul, do mais azul da lua em todas as suas fases, sagrou-se destino e ficou escrito no teu gesto em repouso, pura forma revestida de pele, dimensão real e tangente por dentro do ritual que se sabia secreto e sagrado.

Procurei-te um sentido e cantei por tudo e por nada, mesmo de boca fechada, a herança deixada na areia há setecentos e oitenta anos. Veio outra manhã contígua à matriz que extravasou noites e dias. Voltei a ser cedo em mim e a servir o propósito deste percurso inevitável e isolado. Encontro-me no contacto translúcido e transparente, quase um mito, nas mãos que me acolhem,  as tuas, na nuvem mais alta de onde se atiram panteras e pássaros e poesia e sonhos e desertos vigilantes.

No centro do Grande Círculo eu, construtora de pontes sobre vestígios, sagro distâncias entre a magnífica existência dos teus passos e o momento em que eles se desfazem lentamente. Guardo-te em símbolos e oculto-me nas frases. Amo as visões que os poetas despertam na luz do meio-dia, igual ao esplendor desvelado no fundo dos teus olhos. Acredito na tua alma antiga, luz de uma longa noite que voltou a ser ternura em mim. Já não dói ter-me perdido entre o tempo e as raízes.

As cidades em contraluz precisaram deste silêncio para que o mundo enchesse as minhas mãos de sacrifícios e empurrasse as sombras para lá da eternidade. Há um momento em que apareces e os Príncipes Arcturianos cantam. Depois partes em direcção às constelações etéreas sem olhar para trás e ficas com a claridade que é a coisa mais difícil de encontrar. Eu deixo-me ficar para outra existência.

ao som de: Sanvean, Dead Can Dance (Toward the Within 1994)

9 comentários:

  1. Fico no silêncio do impacto,com lágrimas na garganta... caramba Maria...

    ResponderEliminar
  2. Reencontro(s)... acredito que por tudo o que ficou por dizer.Não por não ter sido dito,mas por ter ficado suspenso na ternura...
    Os abraços doem porque voltam...a partir.Até um dia.Talvez tenha chegado o momento de quebrar o ciclo da nuvem... *

    ResponderEliminar
  3. A essencia portuguesa: viajar por mares nunca dantes navegados. Compreender o que não tem explicação, advinhar que planta nascerá da semente desconhecida, agarrar-se às emoções não se pode: elas voam como pássaros, agora estão, daqui a pouco somem no horizonte ou são mutantes como nuvens, nunca vimos duas iguais...
    Em alguns a dor faz chorar, em outros cantar...
    Beijos.

    ResponderEliminar
  4. Parabéns, Né, feliz aniversário!
    Radiosos sonhos repletos de estrelas*****, flores e onomatopeias, canto, música, poesia, pintura, fotografia, cinema, teatro, vida — viva!
    Beijos & abraços de todas as cores:)
    ________________________________________________
    http://febrafebril.blogspot.com/2010/08/aniversario-de-ne-ladeiras.html

    ResponderEliminar
  5. Parabéns, Né, feliz aniversário!

    Radiosos sonhos repletos de estrelas*****, flores e onomatopeias, canto, música, poesia, pintura, fotografia, cinema, teatro, vida — viva!

    Beijos & abraços de todas as cores:)

    ___________________
    http://febrafebril.blogspot.com/2010/08/aniversario-de-ne-ladeiras.html

    ResponderEliminar
  6. Obrigada querido Hélder :) Sempre a gentileza poética a acompanhar-nos nesta viagem. Bj*

    Obrigada Silvestre.Bj*

    Razinha, acho que o ciclo nubloso iniciou o seu desenlace... Bj*

    Luis, muito bonito o seu comentário. Mergulho poético! Bj*

    ResponderEliminar

Dentro da nave