terça-feira, 24 de agosto de 2010

O Aviador

Fernando Ladeiras
30 de Junho 1921 - 24 de Agosto de 2010


Tudo tem o seu tempo determinado e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. Há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou;Ec 3:1-2

É noite de estrelas com quarto crescente. Olho através da janela rasgada que dá para o jardim seguindo os movimentos de início de noite dos visitantes que se vão chegando. Uns trepam às árvores, outros farejam cuidadosamente os troncos e esfregam-se nas plantas que foram regadas ao fim da tarde. Cheira a terra molhada e a uvas morangueiras. Dentro da casa o chá de lúcia-lima, acabada de colher, aromatiza o alpendre da janela rasgada sobre o jardim. A terra que já teve rosas e hortelã aguarda agora que lhe revolvam as entranhas e a preparem para outras oportunidades. Tempo para abraçar e tempo para se separar. Quais são as minhas possibilidades? Estou num caminho desconhecido sem saber o que imaginar. As minhas certezas ruíram (talvez não fossem bons planos), não sei por onde começar, nem se quero continuar. Há um tempo que se esgota e determina a nossa permanência que de repente passa a outra coisa. Acho que chegou o tempo de morrer e de apagar o que se estiolou. Não me apetece sentir o que sinto, nem ser o que já não quero ser mais. Não acredito nas palavras penhoradas pela falta de jeito duma verdade que se esconde. Colocam-se intenções que se pensam as melhores, mas tudo acaba em silêncio. Tempo para calar e tempo para falar. O chá está pronto, no jardim os visitantes aconchegam-se. Toca o telefone que me traz novas sobre o estado de saúde do meu pai. Admiro-lhe a estatura e a constituição física do aviador-desportista, a queda para a música e o gosto pela leitura, a rapidez dos cálculos matemáticos e as soluções intrincadas de engenharia que projectava e, também, o romantismo e a habilidade para a dança que partilhava com a minha mãe.

A mãe e o pai.
Está a reagir bem, conta o meu irmão, acordou e disse que tinha excelentes novidades para todos. A minha irmã levou-lhe o rádio com os headphones, para ouvir o mundo pela Antena1. Há um programa de música jazz que ele adora e lhe recorda a América que tanto amou. A Menina Dança? É assim que revisita o Louisiana e os bares dos negros de New Orleans, que depois de colherem o algodão se entregavam aos blues onde já muitos deles jazem e o meu pai com o sonho americano cortado ao meio, a voar pelos limites dos céus no seu fato de couro, a descrever-se nos loopings da alma em postais ilustrados com destino ao Porto, a treinar canções da moda para os serões de anos que me iriam acontecer.

O pai entre dois camaradas antes de levantar voo

Sinto falta de Setembro, da casa dos avós, da família numerosa e barulhenta, da capela onde se sussurrava entre véus e terços, dos picnics sobre os penedos com a vista a perder-se, da voz do meu pai a cantar “you are my sunshine, my only sunshine”, das tempestades que se abatiam sobre vales e montes e que nos obrigava a fechar as janelas rasgadas do casarão, do meu pai contar que no deserto Mojave assistiu a muitas sobre o maior cemitério de aviões e que a temperatura dos relâmpagos era três vezes mais elevada que a da superfície do sol, das vozes das tias-avós a redobrarem-se nesta altura em rezas a Santa Bárbara por tamanho castigo vindo do céu. Tempo para destruir e tempo para construir. Depois dizem-me que as energias estão a ser trabalhadas numa rapidez irreversível, que há muito trabalho pela frente, que nos está a ser pedida uma entrega sem resistências, que são tempos de profundas mudanças e que haverá perdas, mas que ascenderemos. O que fui? O que sou? Não sei, nem sei se me procuro desse modo. Há pessoas com uma certeza molecular que me aflige de tanta precisão. Não sei se são as mais felizes, mas enquanto detonam o pior que têm dentro delas socorrem-se ao mesmo tempo. Eu afundo-me nas incertezas e imperfeições do meu ADN. Duvido dele, do meu resultado em desalinho. Lá fora é perfeito. A natureza fala com o céu e a lua em quarto crescente responde em nome de todos os corpos etéreos. Estão ligados às raízes com o grande sol central e este com o interior de todos os elementos naturais. Ciclo perfeito. Os visitantes dormem pela noite dentro enquanto os observo da janela iluminada pela luz exterior, que não chega para me cegar. Tempo para ganhar e tempo para perder. Este canto da vida, meu desde o início, atravessa um tempo determinado a deslocar-me no tempo. Mesmo que eu não queira ser um aviador.

Ao som de: Turn! Turn! Turn! The Birds (Turn! Turn! Turn! - 1966)

O meu pai partiu para o imenso céu esta madrugada.

19 comentários:

  1. Um tempo para chorar.

    Um beijinho para a Né.

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  2. Memorial para um epitáfio:

    QUE UMA BRISA LIGEIRA SE LEVANTE
    E ASSOBIE NAS ASAS DE QUEM VOOU
    O SWING DA MORTE QUE SE PERFILHOU
    ANTE O CANTO DOCE E AMANTE

    NO ABRAÇO DO AZUL ELEGANTE
    QUE RECONHECE QUEM POR ELE ANDOU
    E POR QUEM A MEMÓRIA SE ENCANTOU
    AO RECORDAR NA VOZ DE QUEM O CANTE

    O SAL AQUOSO DE UMA TRISTEZA
    QUE DESLIZA P´LA FACE DA PUREZA
    EM NOME DO ENCANTO QUE PARTIU.

    RESTA A ASA QUE AO CÉU SUBIU
    E QUE APENAS O SILÊNCIO OUVIU
    NO BELO ENCANTO DA SUA NATUREZA.

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  3. Epitáfio

    Ainda correm lágrimas pelos
    teus grisalhos, tristes cabelos,
    na terra vã desintegrados,
    em pequenas flores tornados.

    Todos os dias estás viva,
    na soledade pensativa,
    ó simples alma grave e pura,
    livre de qualquer sepultura!

    E não sou mais do que a menina
    que a tua antiga sorte ensina.
    E caminhamos de mão dada
    pelas praias da madrugada.

    Cecília Meireles, in 'Poemas (1942-1959)'

    Um grande beijo, Né.
    Isabel Pires

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  4. "Se conhecesses o mistério imenso do céu
    onde agora vivo,este horizonte sem fim,
    esta luz que tudo reveste e penetra,
    não chorarias,se me amas!
    Estou já absorvido no encanto de Deus,
    na sua infindável beleza.
    Permanece em mim o teu amor,uma
    enorme ternura que nem tu consegues
    imaginar.

    Vivo num alegria puríssima.
    Nas angústias do tempo pensa nesta casa
    onde um dia estaremos reunidos para além
    da morte,matando a sede na fonte
    inesgotável da alegria e do amor infinito.
    Não chores,se verdadeiramente me amas!»

    (Santo Agostinho)

    Há uma parte de mim que não quer chorar e outra que o faz desconsoladamente. Acho que o luto é isso.

    ps - Obrigada pelas vossas palavras solidárias. Bj*

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  5. Não fossem as partes feitas de ternura...
    Beijinhos,Maria.sorvem lágrimas. *

    Uma Hora Para A Loucura e a Alegria

    Uma hora para a loucura e a alegria! Ó furiosos! Oh, não me confinem!
    (O que é isto que me liberta assim nas tempestades?
    Que significam meus gritos em meio aos relâmpagos e aos ventos rugidores?)

    Oh, beber os delírios místicos mais fundamente que qualquer outro homem!
    Ó dolências selvagens e ternas! (Recomendo-as a vocês, minhas crianças,
    Dou-as a vocês, como razões, ó noivo e noiva!)

    Oh, me entregar a vocês, quem quer que sejam vocês, e vocês se entregarem a mim, num desafio ao mundo!
    Oh, retornar ao Paraíso! Ó acanhados e femininos!
    Oh, puxar vocês para mim, e plantar em vocês pela primeira vez os lábios de um homem decidido.

    Oh, o quebra-cabeça, o nó de três voltas, o poço fundo e escuro – tudo isso a se desatar e a se iluminar!
    Oh, precipitar-me onde finalmente haverá espaço e ar o bastante!
    Ser absolvido de laços e convenções prévias, eu dos meus e vocês dos seus!
    Encontrar uma nova relação – desinteressada – com o que há de melhor na Natureza!
    Tirar da boca a mordaça!
    Ter hoje ou todos os dias o sentimento de que sou suficiente como sou!

    Oh, qualquer coisa ainda não experimentada! Qualquer coisa em transe!
    Escapar totalmente aos grilhões e âncoras dos outros!
    Libertar-me! Amar livremente! Arremeter perigosa e imprudentemente!
    Cortejar a destruição com zombarias e convites!
    Ascender, galgar os céus do amor que foi indicado para mim!
    Subir até lá com minha alma inebriada!
    Perder-me, se preciso for!
    Alimentar o resto da vida com uma hora de completude e liberdade!
    Com uma hora breve de loucura e alegria.

    W. Whitman,in Leaves of Grass

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  6. Voo porque sei o que é voar. nem sempre sinto as asas nem a vontade de as procurar. para voar basta apenas precisar!
    um beijo terno
    João

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  7. Os que nascem com asas voarão sempre, até na morte.

    Abraço,
    Paulo

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  8. Né , antes de mais um beijinho grande de quem admira o teu modo de ser desde tempos quase imemoriais ! :')( ***

    Concerteza que o último adeus a quem nos trouxe ao mundo não é vivido por todos do mesmo modo ... espero que este teu momento seja vivido com saudade mas também com muita paz e tranquilidade.
    Afinal de contas imagino que alguns dos momentos mais reconfortantes e inesquecíveis que
    o teu pai terá vivido terão sido proporcionados por ti.
    O que um pai não sentirá quando se ouve o Júlio Isidro dizer na televisão que considera a filha talvez a melhor voz da música popular portuguesa !! ...
    (Falei em música popular para não ferir susceptibilidades).
    O meu pai partiu em 27 de Dezembro de 2006 e por vezes ainda me parece que foi há um ano ou dois. Mas foi no meio de um aglomerar de situações e emoções de tal forma intensas que nos dias seguintes pareceu-me sentir os pensamentos entrarem num turbilhão imparável ao ponto de passar o tempo querendo fazer alguma coisa como por exemplo abrir a porta de um armário e esquecer-me do que tinha ido fazer. Em vez de ver as coisas que tinha na frente via constantemente o filme de toda a vida passada correndo diante dos olhos em "78 rotações", como quando se quer passar um filme à frente e se vêm as imagens correr muito rápido.
    Desde pequeno que me havia habituado (ou havia sido ensinado) a não manifestar as emoções (mesmo que isso por vezes fosse mal interpretado e trouxesse consequências que felizmente já consegui ultrapassar e bem). Seis meses antes do meu pai ter partido e seis meses depois vivi com o diagnóstico de uma doença que também só me dava uma esperança de vida de quatro ou cinco anos, sem nunca ter falado sobre isso com absolutamente ninguém, nem amigo nem familiar.
    Seis meses depois os médicos disseram-me que afinal havia sido engano, que havia sido uma estranha e muito rara coincidência em exames e análises.
    O luto deve ser talvez a experiência mais subjectiva e pessoal de toda a vida humana e é por isso que espero que este teu momento seja vivido com muita saudade mas também com muita serenidade. Quando se tem uma memória tão cheia de boas recordações concerteza que a saudade será maior mas a sensação do dever cumprido também deve compensar o sentimento da aparente separação.

    E pronto mais uma vez me perdi neste vício da escrita, mas também aproveito para te dizer que ao ler o texto que escreveste acima fiquei sinceramente com mais um motivo de admiração em relação a ti. Costumo ter alguma dificuldade em encontrar autores que goste de ler e já me aconteceu algumas vezes ler textos como o teu, por exemplo, e ficar a pensar que são muito mais agradáveis de ler do que os de vários escritores consagrados.

    Mais uma vez um beijinho grande e os votos de que consigas canalizar as emoções para a criatividade que faz feliz a todos os que te ouvem ... :') ****************

    Bjs
    Carlos Seabra

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  10. Um beijinho Né. Sabes que é do coração e que estou contigo na tua dor.

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  11. Bem hajam por tudo. As vossas mensagens estão a preencher-me de Paz e Doçura.
    Abraço-Luz*

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  12. Este comentário foi removido pelo autor.

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  13. Né Um grande abraço .

    Cristina Seabra

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  14. Não há palavras para compensar perdas. Essa passagem dos Eclesiastes foi a pregação do meu casamento com a Clara.
    Beijos

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  15. O luto é um segredo que se guarda num cantinho do tempo, entre as lágrimas que gotejam e as que se recolhem como sementes da memória. O tempo passa, a memória não o estranha, porque de entre os sonhos que se vivem, a vida dos que se amam é eterna, passam para além de todas as fronteiras, e, a morte, é uma delas. Aprenderás, com o tempo, que só o relógio das horas tem os ponteiros das horas erradas. Tudo o resto permanecerá imutável na vida das memórias ou na memória da vida. A morte curva-se, e pedirá desculpa pelo seu erro. Os sonhos perdoar-lhe-ão.
    Jorge Manuel Brasil Mesquita
    Lisboa, 30/08/2010

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