segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Mater


 
O terraço da casa é cercado por uma amurada de sebes lunares. De lá, todas as manhãs, a mulher observa o seu mundo azul envolvido por luzes que vão despertando. Pequenos seres acordam, bocejam, brincam com as suas asas e rendem outros que guardam aquele jardim. A mulher saúda-os e oferece os seus cabelos longos para que subam e fiquem mais juntos de si. Recebe-os com gotas de mel e maracujá que lhes prepara de madrugada e um sorriso de gratidão por não a deixarem sozinha. É de noite que as coisas se tornam difíceis, o coração num tumulto, os medos ancestrais, a constante vigília de um sono atribulado.
 
Na subida para o terraço fazem dos seus cabelos aquilo que uma vez espreitaram um homem, que se julgava macaco, fazer com os cabelos das árvores. Soltam pequenos gritos inaudíveis aos humanos, que só à mulher é permitido escutar, e ela ri e tenta-lhes imitar as oitavas.  Os vizinhos alertam-se com estes ensaios vocais  que lhes lembram os bichos marítimos do canal Odisseia, sim, aquelas baleias de bossa que têm um canto para chamar os filhos e que os cientistas gravam e levam depois para o Pentágono excitados com a descoberta de uma quase certa espionagem cetácea.
 
Ela sabe que é um pouco estranha para a vizinhança, mas fala-lhes à mesma da Natureza e de Deus, olha para o que eles olham, vê o que eles não vêem e sabe como são tratadas as inúmeras civilizações dos outros quintais. Ela conhece o que esses gigantes pensam e diz aos pequeninos para terem paciência, um pouco mais, que nem todos estão preparados para a mudança, que é preciso fazer um esforço para resgatar a concórdia nos jardins maltratados e promete que tudo fará para os proteger do medo dos desumanos, ela que mal dorme de tanta coisa sentir.
 
Enquanto sorvem as gotas de mel e maracujá ao seu colo, a mulher conta-lhes como foi o princípio em que a terra era o interior da luz. Como uma fotografia que se perdeu e se procura nos sítios mais improváveis depois de tantas viagens à revelia da ordem ela descobriu uma réplica no seu jardim, uma fonte de informação sobre os tempos que esqueceu. Sentiu-se preparada para conceber outra vida na paz daquele mundo que as luzes refeitas do sono envolvem. Dos seus pés descalços saem-lhe raízes douradas que vão penetrando com doçura as rochas sedimentadas até ancorarem no coração da sua origem. Repete o percurso da semente a caminho de se encontrar livre, coração aberto na matéria, a terra em órbita através das suas contracções, a misericórdia das flores e frutos que o tempo sagrado lhe envia, o amor de dois deuses festejado pela boca das aves.
 
Os vizinhos recolhem-se nas casas, não gostam da assinatura da chuva repentina, não agora, que não é tempo dela, o que plantaram não chegarão a colher e não entendem a criatura do lado que permanece no terraço. Pensam ir acordá-la, mas é melhor cada um fazer a sua vida. Os pequenos seres que lhe saltaram para o colo, escondendo-se atrás das orelhas e do pescoço, escorregam agora pelos seus braços e saem em bicos de pés. Deixam-na sossegada a dormitar, a face virada para o espaço num sorriso invariavelmente enfeitado com claves de sol que outras mães universais lhe oferecem. Sabem que viaja frequentemente de dentro de si para outros lugares na companhia de seres que mais niguém vê e de quem sente saudades.
 
Aqui chegou depois de muitas outras imensidões transatlânticas que se desvendaram diante dos seus olhos frequentes. Entre a terra e o mar um grande mundo cresceu todos os dias e uma nova eternidade deixou-a estar sem ficar. Sob as suas pálpebras essa infinitude perpetua-se e os pequenos seres sabem-lhe a origem. Tocam instrumentos de sebes e flores porque é assim que os anjos se anunciam às mães da terra.

ao som de The Memory of Trees, Enya (The Memory of Trees, 1995)

3 comentários:

  1. Há raízes que começam nos troncos.
    (saudades das gotas de mel no abraço de maracujá)
    E folhas,que acabam na terra...
    Bj

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  2. «But it’s a long, long while from May to December,
    And the days grow short when you reach September.»

    Suave Setembro, Né.
    Beijos.

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