sábado, 25 de maio de 2013

Quatro semanas depois

Mais uma semana de internamento.
Ainda sobre as recaídas depressivas - trabalho que continuou a ser desenvolvido nas aulas de psicoeducação - tentámos identificar, com maior especificidade, os factores desencadeantes que o stress nos provoca.
O que é esta ansiedade? Em que estado de tensão e sob que pressão fazemos esforço para viver?
De novo uma variedade de sintomas que nos passam invisíveis, de novo a necessidade de os reduzir até encontrarmos aqueles que sinalizam esta guerra interna.
- dores de cabeça
- transpiração
- aceleração do ritmo cardíaco  
- dores de costas  
- alterações de apetite  
- dificuldade em adormecer  
- maior necessidade de dormir 
- tremor nas mãos ou no corpo, “tremores internos”
- problemas de digestão
- dores de estômago
- boca seca
- dificuldade de concentração 
- exaltação com factos ou situações pouco importantes
- irritabilidade
- inquietação
- choro frequente  
- aparência descuidada
- tendência para acidentes (normalmente tenho-os na cozinha e nunca percebi porquê. Coisas que me caem, queimaduras e cortes). Esta alínea resulta da falta de concentração perante um trabalho automático, como o de cozinhar, em que o pensamento está focado não no que fazemos, mas naquilo que nos incomoda
- uso de álcool ou drogas


Os factores desencadeantes dividem-se em
1 – acontecimentos de vida marcantes
2 – transtornos diários mais pequenos

O primeiro grupo é composto por motivos de mudança e tudo o que lhe está implicado:
- mudança de casa
- mudança de emprego/ desemprego
- casamento/ divórcio   
- nascimento de um filho/morte de um filho
- doença grave
- receber herança/ ganhar muito dinheiro
- problemas financeiros
- problemas de saúde ou morte de um familiar
- ser vítima de um crime
- problemas com a justiça
- ter um relacionamento/ romper um relacionamento
- deixar de fumar
- iniciar uma dieta
- novas responsabilidades
- ficar hospitalizado
- não ter casa
- problemas com o consumo de álcool e drogas


No segundo grupo as questões do quotidiano são igualmente várias :
- falta de dinheiro para as despesas básicas
- frequentar ambientes agitados e confusos
- transportes públicos
- discussões em casa ou no trabalho
- lidar com pessoas desagradáveis
- não ter privacidade em casa
- não ter intimidade com as pessoas mais chegadas
- tarefas domésticas desagradáveis
- viver numa zona de risco ou de que não se gosta


Deu para perceber que a lista  pode nunca mais ter fim porque cada pessoa encontra motivos perturbadores consoante a sua realidade de vida. 
Poucas são as coisas que nos podem dar alguma paz, o que me leva a pensar que, aquilo que o homem constrói para seu conforto não passa de uma mentira. 
Há sempre uma razão que nos provoca infelicidade e os desgostos acumulados dessa infelicidade torna-nos doentes.

Depois de algumas horas de trabalho elaborei o meu "plano"

Plano de Prevenção de Recaídas
Aviso de acontecimentos ou situações que desencadearam no passado uma recaída:
1. Problemas familiares
2. Fim de relacionamentos e mudanças de casa
3. redução de trabalho (a área cultural é a primeira a cair)
4. Conflitos interpessoais

Aviso dos sinais precoces de alerta vividos anteriormente:
1. Dificuldade em dormir/insónia
2. “Assalto” de memórias angustiantes
3. Cansaço/falta de energia/desinteresse
4. Desilusão com os outros

O que me pode ajudar em caso de estar a ter um sinal precoce de recaída:
1. Consultar psiquiatra/psicólogo
2. Encontrar uma pessoa honesta com quem pudesse falar (mas creio que isso já passou para o lado da utopia porque não existem pessoas honestas e muito menos amigas)
3. Recorrer a um hobbie para canalizar o meu desencantamento com a vida (colocar a minha criatividade, também, como expressão dos sintomas a limpar)

Quem eu desejo que me ajude, e o que quero que me façam:
1. Desejar, desejava que quem criou tudo isto falasse comigo.
Na impossibilidade de receber respostas da fonte principal, conhecer um sábio que me dissesse o que não sei e respondesse ao que eu pergunto há tanto tempo... na impossibilidade de ser um sábio acessível ou de terem deixado de existir sábios, seguir para o ponto 2.
2. Uma terapia que me seja adequada e na qual possa confiar para me ajudar a encontrar as supostas ferramentas com que nasci para minha defesa pessoal e crescimento. Não me limitar à medicação porque esta tem somente atenuado alguns aspectos da crise. Os motivos que a causam permanecem enraizados há demasiado tempo.  
Também desejaria dominar uma forma de estar que pacificasse os meus medos/demónios numa expressão artística que não a música porque não quero mais servir-me dela.

3 e 4 }Estes números são dispensados porque não vejo mais pessoas.
Quem eu quero contactar em caso de emergência:
Bom, se depois das démarches que efectuei, identificando sintomas, reconhecendo o problema desencadeante, procurar ajuda e mesmo assim entrar em crise, só mesmo chegar às urgências e ser internada. 
Não há ninguém para contactar. 
 






Emoções Positivas ou viajar na maionese?


Quando entrei na sala olhei para a frase escrita no quadro:

Saborear as coisas agradáveis da vida.

A psiquiatra que a tinha escrito aguardava que nos sentássemos para começar.

Isto é um pouco estranho, pensei. Quando o nosso pensamento ainda está no polo oposto que coisas agradáveis podemos recordar?

E a sessão começou:

O mecanismo tem de ser activado para prolongarmos momentos agradáveis. No passado não existiram só coisas negativas - olhava para nós à espera de aprovação -  Vivemos momentos felizes - acrescentou -  Não temos controlo sobre o que se passa à nossa volta e não podemos sofrer por algo que não podemos evitar. Ao tentar controlar situações negativas que não dependem de nós devemos perguntar-nos se vale a pena ficarmos por aí ou deixá-las e seguirmos em frente.

Ok – disse para os meus botões - estou a ter uma aula de auto-ajuda à Louise Hay... - e procurei uma posição mais confortável na cadeira.


A Drª L. é uma mulher bem resolvida e enérgica. De facto, transpira positividade por todos os poros e o sotaque venezuelano que não perdeu, embora resida há muitos anos em Portugal, dá-lhe uma expressividade cativante e alegre. Pelo menos as minhas colegas do internamento ouviam-na concentradíssimas, absorvendo cada palavra como alforges de água para matar a sede de toda uma vida.

Isto é o efeito que os livros da Louise Hay suscitam – pensei enquanto as observava. 
Sim, já houve uma época em que li a "pioneira de auto-ajuda" a conselho de uma pessoa conhecida, que me jurou a pés juntos sobre a mudança de vida que  aconteceria se me entregasse  ao  ensinamentos da... qual é mesmo a designação da senhora? Autora motivacional...
Pode Curar a sua Vida e o Poder está Dentro de Si foram lidos, mas não causaram nenhuma mudança em mim. Não sou do tipo de pessoa que se deixa levar embevecida por uma quantidade de clichés e frases feitas e cuja profundidade não vai mais que um degrau raso da entrada de uma porta ao nível da rua.
Retomei a palestra da nossa médica que estava a dar o exemplo de África. 
Fora em tempos voluntária num país em guerra e trabalhou com crianças que nada tinham. Perderam os pais, perderam as aldeias, perderam uma vida e ali estavam , não com o básico, mas com o mínimo dos mínimos e, ainda assim, sorriam e eram felizes. Viviam o presente e agradeciam por estarem vivas.


Mas doutora -  interrompi -  sabemos que o pensamento gera perguntas e respostas, questiona e põe em causa. Qualquer criança vivendo uma situação semelhante ainda não chegou a esse processo de pensamento por ser criança e pelo instinto único de sobrevivência. Os operários que estão concentrados a colocar um parafuso dentro de uma porca não pensam noutra coisa enquanto  estão concentrados na porca e no parafuso. Ora, as pessoas que aqui se encontram, e ficaram como se vê, romperam  com a mecanização das suas vidas. Ao pensar no que tinham e no que lhes faltava colocaram tudo em causa. A consciência tomou conta delas e, seja sobre o passado ou sobre o futuro, o beco foi construído por uma forte emoção. Ninguém vive confortável no beco. Por isso vieram parar aqui. A inocência de aceitar o que se tem, o pouco que se tem, não é duradoura. Essas crianças africanas quando crescerem vão pensar no que passaram e  muitas  caixas de Pandora vão ser abertas... como se constrói um pensamento positivo sobre algo que nos afectou negativamente? A vida, a nossa vida,  planos, sonhos,  expectativas...


Há uma característica estudada na física – interveio a médica – chamada resiliência que é a capacidade de acumular energia sob stress sem haver ruptura, que também pode ser aplicada às pessoas. Perante um choque, um desgosto, um problema grave, supera-se a dor aprendendo com ela e revertendo-a positivamente a nosso favor. Isto é, existe uma capacidade de nos levantarmos depois de cairmos e é isso que temos de aprender.

Depois contou que teve uma paciente no internamento a quem lhe tinha morrido o único filho. A dor que sentia era insuportável, mas ao fim de algum tempo de tratamento decidiu tirar um curso superior e escolheu Direito. E porquê? O facto da morte do seu filho ter sido causada por outra pessoa, num acidente de viação, deu-lhe inspiração para defender os que passam pelo mesmo, a fim de obterem justiça, sentirem apoio e consolo, e prosseguirem com as suas vidas. Foi o que esta pessoa descobriu que tinha de fazer, depois do desgosto terrível por que passou, para prosseguir com a sua.
O que precisamos fazer é começar a dar valor às pequenas coisas - afirmou -  Vocês acham que ter um carro, um telemóvel e muito dinheiro é a única fonte de felicidade? Porque é que aquelas pessoas famosas, habituadas a ter tudo, reagem de forma tão destrutiva? Citou alguns nomes conhecidos ligados à música e ao cinema. Todas concordaram.
Não é melhor sentir o que a natureza pode fazer por nós?  - continuou - O prazer de um aroma, uma paisagem, um canto de um pássaro? Porque não procurar aí uma ligação forte que fique na memória e ao recordá-la sentirmos prazer com isso? E porque não partilhar com alguém sobre essa actividade positiva que fizemos? Comunicar também é uma forma de ser feliz...


Mas doutora – voltei eu – isso seria perfeito, claro...  mas se  todos os dias somos bombardeados para consumirmos o carro, o telemóvel... tudo está feito para a lavagem cerebral nos levar a desejar o que não nos faz feliz. E sobre a natureza? Não há a mínima preocupação, as pessoas nem se apercebem que existe nem a respeitam. Os mesmos que lançam a mensagem de consumo do carro, do telemóvel são os que poluem, estragam, destroem essa possibilidade de recordação feliz... nós não somos nada ao pé desse poder... (não devia falar, mas é mais forte que eu -  pensei. É importante passar uma mensagem positiva, mas isto está idílico demais...)


Devemos autocongratular-nos com o que sentimos, aumentar a nossa percepção, o olfacto, o tacto, deixarmo-nos absorver pela situação e desfrutar ao máximo o momento. Podemos encontrar um novo amor, um novo trabalho! Temos de criar essa possibilidade em nós mesmos. Se permanecermos fechados às coisas, então sim, não vamos conseguir sair da negatividade – insistiu a médica.


Um emprego? - interrompi já arrependida de o ter feito– um emprego para nós que  nada representamos para o mercado de trabalho? E o facto de termos estado internadas? A sociedade estigmatiza-nos, não nos quer dar responsabilidades, não acredita no que valemos porque um dia ficámos “mal da cabeça”. Desculpem estar-vos a dizer isto – e olhei para todas – mas é a realidade que nos espera lá fora. Eu não quero construir sonhos que vão ser novamente pisados.


Mas sonhar é importante! - exclamou a médica – e sim, é verdade que a sociedade é preconceituosa com este tipo de doença, mas vocês têm que ajudar a combater isso!


Olhou para mim e disse por cima dos óculos: eu não conheço o seu caso, mas posso falar com a sua médica e ajudá-la. Vamos ajudá-la.


Obrigada, estou aqui para isso mesmo, para ser ajudada, mas também quando me fala em encontrar o amor parece que estou a ser levada para uma dimensão irreal porque isso não existe e não acredito que seja assim.


Conhecem o Woody Allen? - perguntou-nos sorrindo - Ele tem muitos talentos e um deles é o de saber como as pessoas são. Vou-vos ler uma frase, e com isto queria acabar a sessão de hoje: O talento para ser feliz é apreciar e gostar do que se tem, em vez de se apreciar e gostar do que não se tem – recitou - A tarefa que vos proponho é a de fazerem um plano de actividades agradáveis para serem executadas.


Não sei o que possa planear para mais tarde saborear recordações felizes – disse para mim enquanto saía da sala.
Não tenho nada contra a médica que iniciou esta terapia de grupo sobre pensamento positivo, mas não quero que encha chouriços com coisas tão inalcançáveis como o que tinha acabado de ouvir. Ser-se positivo é importante, mas não acredito que  se chegue lá desta maneira. Se as afirmações terapêuticas de Louise Hay curassem os  seus leitores, metade da humanidade estava salva e não seria preciso escrever cerca de 30 livros à volta do mesmo assunto - ( Pode Curar a sua Vida vendeu 40 milhões) e é só fazer as contas.


No dia a seguir, enquanto dávamos uma caminhada com os enfermeiros estagiários, falámos um pouco sobre a sessão da Drª. L. Perguntaram-me o que tinha achado. Bom... gostei da senhora, percebi que foi voluntária em África, isso tem muito valor para mim, mas não me rendo ao que foi dito. As coisas não são assim.  Mesmo sabendo que a natureza nos pode dar o que tem de melhor, e com isso melhorarmos também, acho que o outro tipo de natureza, a humana, estraga tudo. E a minha preocupação é a de como me vou defender disso. Como posso evitar mais dor vinda desse lado...


Perguntaram-me se acreditava no amor. De quem? - perguntei – no amor dos animais acredito e naquele que a natureza nos oferece em todas as maravilhas que só dela são. Do resto nem pensar. O amor não é fodido como diz o livro. O amor é uma invenção impraticável que faz da nossa vida uma merda.

Passámos por uma rua que nos chamou a atenção. Na esquina havia uma garagem cheia de coisas penduradas. Cestos de vime, patos de borracha, bicicletas, leques, decorativos, carrinhos de bebé, triciclos... decidimos espreitar. Era um ferro-velho/alfarrabista. 
Logo à entrada havia uma pequeno armário a abarrotar de livros. Os meus olhos aumentaram. Agachei-me e a minha mão puxou por um ao calha. Quando virei a capa para ler o título achei estranho : Só o Amor é Real – a história do reencontro de Almas Gémeas, por Brian L. Weiss. Virei-me para o grupo e disse-lhes: este autor é um psiquiatra muito conceituado, especialista em depressões, fobias, ansiedade, um sábio para muitos esotéricos. Olharam para mim seriamente. É verdade! Não é nenhuma Alexandra Solnado. É director do departamento de psiquiatria de um hospital em Miami. Escreve sobre o que foi desenvolvendo com os seus pacientes, regressão e terapia sobre vidas passadas. E neste livro diz que só o amor é real. Interpreto isto como um desafio e vou levá-lo. Elas riram-se.
Entrámos na lojinha cheia de tudo o que se possa imaginar. Máquinas de escrever,  carteiras e malas de senhora, porta-chaves mirabolantes, frascos de perfume do século passado, canetas de tinta permanente, revistas de banda desenhada, cavalos de corda, chávenas de café, tachos de esmalte, candeeiros de porcelana, bijouteria vintage...um mundo de pó e de muitas estórias.
São 3 € - disse o dono do lugar quando lhe estendi o livro.


Reparei que estava assinado por uma Luzia Antunes com a data de 2000. Será que reencontrou a sua metade? Será que não? Terá morrido? O que leva alguém a desfazer-se de um livro? Como chegou a esta loja de velharias? 


Porque me veio parar às mãos?




2 comentários:

  1. Gostei muito desta sua publicação! Li-a atentamente! Concordei e discordei, como é obvio!

    Na sua afirmação, "Eu não quero construir sonhos que vão ser novamente pisados.", perdoe-me, talvez a ligeireza da minha apreciação, mas não me coloco do lado dessa sua barreira!

    Acho que a única forma de nos superarmos em tudo na vida, é SONHAR! Nenhum sonho é pisado por ninguém! Eles são sempre inatingíveis! Porque, precisamente, são sonhos! Por todas as razões, alimentam-nos a alma! E porque, como tão bem sobre poetisou, Gedeão, eles COMANDAM A VIDA! Em todos os estados sde alma, penso eu!!!


    ResponderEliminar
  2. Nunca acreditei em livros de "auto-ajuda". Parecem-me sempre escritos por alguém que se "ajuda" a ganhar muito dinheiro à custa do sofrimento de outros.
    Mas isso sou eu..."whatever gets you through the night/life...it's alright" (J Lennon).


    "...porque não existem pessoas honestas e muito menos amigas."
    "O amor é uma invenção impraticável que faz da nossa vida uma merda."

    Infelizmente, tendo a concordar. Todos me acham muito negativo...mas ainda não consegui recuperar a inocência de gostar de pessoas. Também não fecho portas.

    Força, Né.

    ResponderEliminar

Dentro da nave