Esta semana, o
“trabalho de casa” de psicoeducação foi o de procurar sinais
precoces de alerta. Quando surgem, por um factor desencadeante
qualquer, e não são tratados de imediato, conduzem-nos a uma
recaída. Por vezes são sintomas imperceptíveis à nossa avaliação.
Porém, aquilo que me
ocorre quando penso em todas as “pré-crises”, é a vergonha e
a culpa crescentes por estar de novo no limiar da depressão e falhar
no desempenho do que estiver a fazer. O desejo de camuflar esses
sinais, para continuar dentro da normalidade que esperam de mim, faz
com que não queira saber dos sintomas. Costumo argumentar
comigo mesma que vou ter força suficiente para ultrapassar a ameaça
eminente, sem ter de voltar ao médico e à medicação. Erro meu. É muito pior.
Segundo os apontamentos
que tirei, a dificuldade em dormir é um dos sintomas que pode
evoluir para a insónia que, por si só, já é uma forma declarada
de recaída.
Tive meses de insónia,
ao longo dos anos, que começaram sempre por um certo desconforto em
adormecer. Ler até cair para o lado, ver um filme e adormecer antes
do fim, (na verdade via 2 a 3 filmes seguidos) jogar solitário até
as cartas ficarem desfocadas, pequenos truques para protelar as
evidências que se iam avolumando até não haver mais truques para
as contornar...
Mas existem outras que
rondam o nosso quotidiano:
- sensação de tensão
e ansiedade;
- dores de cabeça e
músculos contraídos;
- alterações no
apetite (comer de mais ou de menos);
- diminuição da
necessidade de dormir (na doença bipolar e na psicose é muito
comum) indicador de um estado de euforia em que a pessoa fica com
bastante energia apesar de não descansar;
- cansaço, isolamento
em casa, não ter vontade de estar com outras pessoas, não lhe
apetecer conversar, dificuldade em ambientes sociais;
- irritação,
conflitos com os outros;
- parar um tratamento
por achar que a medicação não está a fazer efeito ou por
esquecimento de a tomar (nos casos de euforia a pessoa acha que já
não precisa);
- dificuldade de
concentração, de atenção nas conversas, estar na “lua”;
- sensação de que os
outros estão contra nós, que nos querem prejudicar, mania da
perseguição;
- refúgio no álcool e
drogas;
- gastos excessivos em
compras de forma descontrolada;
- surgimento de ataques
de pânico;
- convicção nas
capacidades invencíveis e excesso de confiança (na euforia);
- descuido nos hábitos
de higiene, usar a mesma roupa;
- praticar uma
actividade durante horas (pode ser uma actividade física como estar
em frente a um computador);
Quando a pessoa opta por aguentar/ignorar o desconforto que sente, seja por não querer incomodar ninguém e mostrar a sua “parte fraca” ou por acreditar que é capaz de ultrapassar sozinha essa fase menos boa, fica irremediávelmente ferida sem se aperceber da gravidade da situação. Aquilo que acha ser determinação contra a doença é mais uma renda de filé de vulnerabilidade, tecida pela negação. A pessoa não quer pensar, sentir, viver e encarar as causas da depressão. Na verdade, quando decide pedir ajuda é para sair da crise e não para a evitar...
Segundo o psiquiatra, que orienta estas "aulas", havendo um empenhamento no tratamento ou seja, frequentar um grupo de psicoterapia ou outro grupo de apoio, avaliar com o médico um ajuste na medicação, gerir o stress em actividades que distraiam e aliviem quando se nota alguma alteração, praticar diariamente exercício físico, não se chegará à temerosa recaída, normalmente pior que a anterior...
O plano de prevenção de recaída é como um estojo de primeiros socorros. Com os sintomas identificados pode evitar-se o que não queremos que aconteça.
Para quem quiser, este questionário existe para ajudar a identificar o que sentimos e nos parece difícil resumir.
Questionário de
Sinais Precoces de Alerta
(adaptação e
autorização, Herz and Melville, 2001)
Sinais
precoces de alerta
|
Eu
tive estas manifestações ou sintomas
|
A
minha disposição andava aos altos e baixos
|
Momentos
de tristeza profunda alternados com vontade para desempenhar
tarefas sem falhar
|
Tinha
imensa energia
|
não
|
Tinha
pouca energia
|
sim
|
Perdi
o interesse em fazer coisas
|
sim
|
Perdi
o interesse na minha aparência ou em me vestir
|
sim
|
Sentia-me
desanimada em relação ao futuro
|
Sim
e com razão.
Novas músicas que não se conseguem gravar; concertos condicionados pela situação actual de crise; paragem do projecto de levantamento do PCI; em suma, perdas de toda a espécie
|
Tinha
dificuldade em concentrar-me e em pensar correctamente
|
Tinha
dificuldade na concentração. Pensar, pensava demais...
|
Os
meus pensamentos eram tão rápidos que eu não conseguia
acompanhá-los
|
não
|
Tinha
medo de ficar louca
|
Por
vezes...
|
Ficava
desconcentrada e confusa com o que estava a acontecer à minha
volta
|
Sim.
Sobretudo
estranheza perante o “funcionamento” da sociedade e do mundo
|
Sentia-me
distante da minha família e dos meus amigos
|
Sim.
Na
verdade constatei que não tinha nem família nem amigos
verdadeiros
|
Sentia-me
desajustada
|
Sim.
Não
entendia a “linguagem” dos outros perante a vida. Sentia que
tinha nascido no momento errado
|
A
religião tornou-se para mim mais importante do que antes
|
Este
sintoma declarou-se inúmeras vezes em crises anteriores, embora
a minha vida tenha andado à volta do transcendente e de um
sinal de Deus. Na crise actual o sintoma foi totalmente oposto.
Cansei-me. Afastei-me de tudo. Creio que é o que se designa por crise de fé.
|
Temia
que algo de errado estivesse para acontecer
|
Sim,
sobretudo com a saúde dos meus filhos
|
Sentia
que os outros tinham dificuldade em compreender o que eu dizia
|
Sim.
E
isso transformou-se num sentimento de frustração enorme.
|
Sentia-me
só
|
Sim.
Terrivelmente
só e com muito medo dessa solidão.
|
Sentia-me
incomodada por pensamentos dos quais não me conseguia livrar
|
Pensamentos
não. MEMÓRIAS
e tudo o que se relacionasse com o passado , sentindo-me
profundamente infeliz e revoltada. Levantava-me e deitava-me com
essa dor cravada no coração.
|
Sentia-me
submersa em pedidos ou sentia que exigiam demasiado de mim
|
Nas
tarefas caseiras TUDO dependia de mim. Sentia-me cansada ao ponto
de descascar uma cebola ser = a uma travessia no deserto a pé e
sem água
|
Sentia-me
aborrecida
|
Sim.
Comigo
mesma
|
Tinha
problemas em dormir
|
Sim.
Trocava
as noites pelos dias
|
Sentia-me
mal sem razão aparente
|
Não
|
Achava
que tinha doenças físicas
|
Sim.
Tudo
doía...
|
Sentia-me
tensa e nervosa
|
Sim,
e com muita vontade de “partir” tudo.
|
Irritava-me
facilmente pela mais pequena coisa
|
Desesperava
por todas as coisas, pequenas e grandes
|
Tinha
dificuldade em permanecer sentada, tinha de andar de um lado para o
outro
|
Não
|
Sentia-me
desanimada e sem palavras
|
Sim.
As
palavras só aconteciam se as escrevesse.
|
Tinha
dificuldade em lembrar-me das coisas
|
Sim,
no que dizia respeito a coisas recentes, não do passado. Esse
está bem vivo na memória
|
Comia
menos que o habitual
|
Sim.
Saltava
refeições e quando comia era pouco.
|
Ouvia
vozes e via coisas que os outros não viam nem ouviam
|
Não
|
Achava
que os outros olhavam para mim ou falavam de mim
|
Não
|
Tinha
cada vez menos necessidade de dormir
|
Não
|
Irritava-me
com facilidade
|
Não
|
Tinha
um excesso de confiança em relação às minhas capacidades
|
Não
|
As
minhas despesas e os meus gastos aumentaram
|
Sim.
Atribuía
prioridades consumistas ao meu refúgio para permanecer em
isolamento o melhor possível: Livros, coisas para a casa, para o
bem-estar dos meus animais e das minhas plantas
|
Outros
|
Chorar
compulsivamente sempre que o assunto se relacionasse com crianças
ou animais, fosse em notícia, em filme ou presencial, (numa
esplanada, na rua, no supermercado) independentemente de ser uma
coisa má ou boa. Se fosse má era choro de injustiça e
impotência; se fosse boa era um choro de comoção profunda
|
Ataques
de pânico na rua, diminuição de actividade física,
desconsideração por mim mesma (julgamentos, culpas, com enfoque
para todas as minhas imperfeições)
|
|
A primeira sessão de psicoterapia
aconteceu depois de uma manhã um tanto difícil. Por vezes, queremos o
silêncio onde não o há e uma voz, como a de uma das doentes, que
compulsivamente vai enchendo a sala, a copa e o corredor, pode ser a
gota de água. Preciso de silêncio, de não ouvir nada ou o menos
possível.
A psicóloga acha-me ainda muito deprimida apesar da medicação e do internamento de mais de 15 dias, mas acredita que este trabalho é necessário para me ajudar a criar outra perspectiva de vida e uma nova forma de me olhar.
Falar do que vivi não
vai ser fácil por ter sido muito e intenso. Houve alguém que me disse em tempos que gostava de fazer um filme sobre a minha vida porque matéria não faltava, nem tempos mortos. Pois não. Alguns aconteceram contra a minha vontade, outros porque permiti mas, no todo quase surreal da minha sobrevivência, o nível de dor
ultrapassou os limites. E há muito tempo que vivo assim. Sei que preciso de abrir cada ferida
para a cura. Não aguento mais viver neste estado onde nada cabe,
onde tudo é sofrimento e eu uma merda.
O internamento é um
mundo à parte onde sentimos uma protecção que não existe cá
fora. É uma rampa onde iniciamos passo a passo o treino para
voltarmos à realidade, mais preparadas e fortalecidas.
A dúvida que me ronda
é que passemos por outros episódios mascarados de incompreensão,
desconhecimento, ilusão, fingimento, desprezo, esquecimento, e
desconsideração de quem não sente empatia por pessoas como nós.
Quantas vão conseguir trabalho? Quantas irão encontrar uma relação
que as respeite? Quantas serão avaliadas positivamente pelos
maridos, filhos e família depois desta luta? Que delicadeza nos será
proporcionada para não voltarmos a sofrer assim? Que
credibilidade teremos para as nossas vidas prosseguirem? Mas sobre isto não falo quando conversamos em grupo. Vejo-lhes os rostos semi-abertos num vestígio de esperança e não os quero fechar com a minha descrença.
Uma da sessões de psicomotricidade foi
dada na piscina.
Há mais de um ano que não entrava numa, desde que um ataque de pânico desconcertante ditou que não havia mais piscina para meu prazer. Não compreendi porque aconteceu, eu que adoro água e preciso dela para me equilibrar, mas conformei-me e deixei de pensar que existiam piscinas. O pânico venceu-me.
Perguntaram-me se eu gostaria de experimentar, hesitei, mas se me acontecesse de novo teria quem cuidasse de mim. E arrisquei. Que bom ter ido.
Há mais de um ano que não entrava numa, desde que um ataque de pânico desconcertante ditou que não havia mais piscina para meu prazer. Não compreendi porque aconteceu, eu que adoro água e preciso dela para me equilibrar, mas conformei-me e deixei de pensar que existiam piscinas. O pânico venceu-me.
Perguntaram-me se eu gostaria de experimentar, hesitei, mas se me acontecesse de novo teria quem cuidasse de mim. E arrisquei. Que bom ter ido.
Senti
de novo o terno acolhimento da água, que me aquietou quanto à ameaça panicosa. Senti-me leve,
tranquila, sem espaço para as emoções mais renitentes, as minhas pernas voltaram a ser asas,
os meus braços livres de peso, e os movimentos de uma doçura infantil.
Brincar na água é bom. Quando dava banho aos meus filhos ou quando íamos para a praia a água produzia sons felizes. O cansaço que mais tarde sentia era reconfortante e as imagens dos risos chapinhados ofereciam-me um sono feliz. A terapia finalizou com uma sessão de watsu que me fez adormecer. Há muito que não sentia este bem-estar.
Brincar na água é bom. Quando dava banho aos meus filhos ou quando íamos para a praia a água produzia sons felizes. O cansaço que mais tarde sentia era reconfortante e as imagens dos risos chapinhados ofereciam-me um sono feliz. A terapia finalizou com uma sessão de watsu que me fez adormecer. Há muito que não sentia este bem-estar.
O watsu é como o shiatsu, mas na água. O relaxamento que proporciona é tão
profundo que se pode descobrir um estado harmonioso até então
desconhecido. Chegar a esse estado é o mesmo que encontrar uma
pérola no fundo mais fundo do mar. A generosidade deste momento
acompanhou-me o resto do dia.
E porque se deu início
a uma actividade, horas depois, que não condizia com o meu estado de
graça, fugi para uma sala onde pude ficar a ler sem ouvir nada.
Na verdade, o grupo de
enfermeiros estagiários, que chegou há dois dias, está a fazer o
seu melhor para nos acompanhar. Mas a ideia de formar uma tuna, com
indumentária própria, ensaios de canções e execução de
instrumentos é tudo o que não quero.
A enfermeira chefe,
mulher com olho clínico e sensibilidade, propôs um trabalho
sobre a história da cidade que me aliciou de imediato e a mais três
colegas do internamento. Vai ser necessário pesquisar
em livros de História e Geografia e consultar mapas da região. A
M. que é perita neste departamento sobre superfícies terrestres, propôs a requisição de cartas
militares para estudarmos as linhas de água que predizem a forma
como a cidade se foi formando, para além de muitos outros pormenores
importantes que só as cartas militares possuem. Duas das estagiárias
decidiram acompanhar-nos neste projecto, que para mim já voa alto: a
realização de um mapa devidamente sinalizado com o que deixou de
existir (monumentos, bairros étnicos, mesquita, sinagoga, portas,
enfim, tudo o que desapareceu para dar lugar ao novo...) e colocá-lo
à disposição de quem quiser saber onde foi o quê.
Ficámos a falar sobre o assunto sem dar conta do tempo. É necessário ir aos núcleos museológicos, à biblioteca, ao turismo, aos monumentos, caminhar um pouco pela cidade com o apoio das enfermeiras, claro. Isto revela motivação no meio da inércia que a depressão provoca e isto só foi possível porque há profissionais que percebem a necessidade de cada doente. Se para algumas a cantoria é terapêutica, para outras é uma tortura.
Acredito que por cada lágrima que lembres, existam dois sorrisos que te esqueces! :)
ResponderEliminarMuita força pôrra!!!
Doí-me ver-te assim.Não é mentira.É ternura.É mais do que isso.O mundo também tem coisas bonitas e algumas aprendi contigo, portanto, por mais longo e penoso que possa parecer (e é) o caminho,a flôr que se abeira, o passarinho que se senta nas folhas,o abraço apertadinho de um(a) tótó!,anunciam e proclamam sinais de cor, afinal nem tudo é cinzento!!...
Não é fácil.Não. Mas também acredito,de coração,não ser um fim. Beijo *