sábado, 30 de janeiro de 2010

Observar Borboletas



Eu - Que comboio é este?
Um - Não sou de cá, não posso dizer.
Outro - Correu por aí que vai para longe para uma paisagem desconhecida.
Um - Vai? Onde posso arranjar os horários? Nunca se sabe quando volta a passar outro...
Outro - Eu soube por acaso, se bem que não acredite muito nisso, no acaso…
Eu - Daria para chegar a tempo?
Um - A tempo de quê?
Outro - De ser feliz, talvez...
Eu - Preciso de o apanhar… mesmo que pare em todas as estações e apeadeiros.
Outro - Achas que deves arriscar? Afinal não sabemos o horário e se chega mesmo a ir!
Um - Isso ninguém sabe, mas é melhor acreditar que vai chegar ao sítio certo.
Outro - Eu não conheço nenhum sítio que seja certo.
Eu - Vou arriscar! Entre o que sobra da vida e o desterro há-de haver um lugar onde eu caiba.
Outro - E nesse sítio tens algum encontro marcado?
Um - Os sem carácter estão em todos os sítios...
Eu - É.... a minha avó dizia o mesmo.
Um - E valerá a pena?
Eu - Estou atrasada... não sei se tenho tempo para pensar na resposta.
Outro - Que não seja por isso! Podes dizer enquanto te acompanho. Exactamente para onde?
Eu - Não sei... ainda...
Um - Que tempos estes... as pessoas andam sem direcção, não se conhecem, e marcam encontros indecisos.
Eu - Se apanhar este comboio acho que não volto.
Outro - Assim não posso ir contigo.
Eu - Porquê?
Outro - Porque tenho a certeza que não vai chegar onde queres.
Eu - Ou porque estás com medo...
Um - Ele não costuma ser assim tão irónico, a não ser que esteja a arrumar o sótão...
Eu - Talvez intua e esteja certo. Deitar fora e limpar, ao invés de escolher e guardar é hilariante!
Outro - Evito perder-me, é isso.
Eu - Sim, é muito cansativo...
Um - Se é....
Outro - O que é verdade é que há outros comboios.
Eu - Pois há, mas vão esgotados de conversas que não querem sair.
Um - Tu, a declamar a certeza absoluta.
Outro - É por isso que levas essa máquina fotográfica e o caderno preto na mão?
Eu - Sim, porque nunca tenho a certeza de nada.

Enquanto espero, já depois de Um e de Outro terem seguido para a Travessa dos Narcisos, sento-me no chão e abro a caixa. A minha viola está sonolenta e eu penso que a música um dia pode acabar. Os músicos podem deixar de o ser e fazer outras coisas como, por exemplo, observar borboletas enquanto estas não se extinguirem. Donde veio esta certeza? Acho que foi no guichet, ao comprar o bilhete, a senhora que me atendeu muito vagarosa, muito ausente, não sabia do som das suas asas. Perguntei: o que fez a música por si? Ela permaneceu igual, eu afligi-me e saí a correr. Sentei-me no chão, abri a caixa da viola e olhei-a com vontade de a acordar. Quis abraçá-la apesar de saber que era uma tentativa desastrada. Olhei para o fim da linha e toquei um Sol.

Música: Stargazer – Siouxsie (The Rapture, 1995)

5 comentários:

  1. Consta, Né, que as estações andam todas trocadas e que os apeadeiros estão em vias — férreas — de extinção.
    Chama-se a isto linhas de alta tensão?
    Cabos condutores de electricidade de cidade em aldeia, ca(te)nárias a perder de vista, pouca terra, pouca terra, estendais de andorinhas às revoadas (das duas, duas: ando a ver muito Hitchcock ou será prenúncio primaveril e cá estou eu a mirar mariposas).
    Desço na próxima: «Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!»
    Sendo sedent(ári)o, subo e sigo viagem a vapor: «No comboio descendente / Vinha tudo à gargalhada / Uns por verem rir os outros / E outros sem ser por nada / No comboio descendente / De Queluz à Cruz Quebrada...»
    Felizmente, Né, daqui da nave até dá para tocar o Sol: «Stargazing me / in tranquility / Up in the galaxy / staring down on me.»

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  2. «Passano ancora lenti i treni per Tozeur»:
    http://periodiccircumspection.blogspot.com/2010/01/i-treni-di-tozeur-alice-e-franco.html

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Dentro da nave