sábado, 27 de fevereiro de 2010

Príncipes e cavalos brancos

 
 
O Diogo conheceu a Paula num daqueles famosos intervalos. O problema teve origem na recusa por parte da Comissão de Gestão da realização do Plenário Geral do Ensino Secundário no Ginásio do Liceu. Estava em causa um espaço sem capacidade para receber cerca de 15.000 alunos. Os maoístas fizeram braço de ferro e os panfletos incitavam a uma mobilização em massa contra a decisão. (…) Vêm-nos dizer que o problema é de "tacos", mas nós sabemos que o problema não é esse, e, sim o da mentalidade tacanha dessa casta de russos-brancos, do coronel do MEC, ao comandante do COPCON, passando pelas comissões de gestão-fantoche (…).

O edifício foi isolado pelas forças militares, mas não impediu a realização de uma RGA anunciada de sala em sala para o dia seguinte. Com 127 votos a favor, 13 contra e sem a contagem das abstenções (o número de alunos do José Falcão era na altura de 2.400) os maoístas exigiram a demissão da Comissão de Gestão e no seu lugar a CPE (Comissão Provisória de Eleições) assegurava o funcionamento do liceu. Não conseguindo o pretendido fizeram outra ocupação nocturna na Associação de Estudantes e houve nova intervenção das forças de segurança.

No dia seguinte mais um meeting no átrio do liceu às 11:30 onde decidiram tomar de assalto as instalações da direcção da Escola. Formaram-se logo dois grupos, claro. O deles a atacar, e o nosso a defender. Houve feridos de parte a parte e a PSP foi chamada a intervir. Nem os nossos amigos Galifões, anarco-sindicalistas e cinturões negros, que nos valiam quando o cerco apertava e o número ultrapassava em muito a nossa resistência, tinham conseguido controlar a situação.

A Paula fora empurrada para uma sala de onde vinha a sair o Diogo. Gritei-lhe que a levasse dali. Sozinhas ainda nos apanhavam com ele era provável que não.

Desde o dia em que fomos expulsas da aula ficou minha amiga e aos poucos foi soltando alguns dos fantasmas que a perseguiam. Um deles foi o episódio trágico em que se perdeu do pai no meio de uma multidão em fúria. Não conseguiu reagir e não se lembra como foi parar ao aeroporto. Também me foi mostrar onde morava. O IARN subsidiava a diária com 270$00 e a Cáritas dava-lhe roupa. Como se encontrava sem família aguardava pela decisão de uma bolsa para completar os estudos.

E como vieste parar a Coimbra? - perguntei-lhe

Por causa da universidade. Linda aquela torre. Já a tinha visto em postais. Sempre quis vir estudar para cá, não nestas circunstâncias, enfim…

Esta cidade sempre foi uma aldeia grande - murmurei entre dentes e de mau humor.

Deu uma gargalhada em cascata e os caracóis fugiram-lhe em todas as direcções.

Adorava ter o teu cabelo! O que mais me entristece no meu é esta lisura enjoativa - suspirei revoltada por não ter uma juba.

Acreditas no amor? – perguntou de repente - Naquele amor que muda a vida das pessoas para sempre?

Claro que sim! - entusiasmei-me. Ali estava alguém que não troçava de príncipes e cavalos brancos – eu espero por esse dia me acontecer! - projectei.

Não estou a falar de um amor e uma cabana que depois se desfaz como a dos 3 porquinhos - sublinhou sem margem para dúvidas.

Também não era isso que tinha em mente. Sabes, aquela ideia oriental das metades da laranja? Eu acho que cada pessoa tem uma - abri-me um bocadinho. Não costumava falar de assuntos que não cabiam no materialismo dialéctico.

Sim, acho que deve haver algo que se encaixa naturalmente, que torna as pessoas em uma– olhou para as linhas da mão – eu vou ter uma vida longa, vês?

Olhei fascinada. Depois olhei para a minha.

Parece que vou ter muito pouca saúde. Caramba! Só cortes e tracinhos - constatei assustada.

Nada disso! Essa é a linha sentimental! A da vida é longa longa longa - revelou com um ar entendido.

Fiquei neutra. Uma coisa anulava a outra.

Tudo depende do momento, AQUELE momento – retomou - Depois vêm as impressões digitais do delírio que nem sempre correspondem...

Pega na mão dela Diogo - pedi - Está a ficar branca. Acho que lançaram gás pimenta estes cretinos. Artilharam-se com mocas de Rio Maior e já abriram a cabeça ao João.

Meti o meu cabelo dentro da camisola e vi o Diogo arrastar a Paula em direcção ao ginásio.

No meio da confusão lembrei-me que com uma linha assim ninguém me viria salvar, mas como a da vida era longa safava-me de certeza.


*Música – Cometa Rossa, Area (Are(a)zione, 1975)

8 comentários:

  1. Para mim é uma verdadeira lição de história. :)
    Podes esclarecer-me porque não vingou o activismo voluntarista?
    É que sinto a minha veia molotov a latejar...

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  2. Por alguma razão a laranja tem número par (salvo raras excepções) de gomos...
    Apoio a causa!
    Beijo*

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  3. lololol a veia molotov... como te compreendo!
    Esse activismo morreu quando se deixou de acreditar. O voluntarismo só em casos excepcionais...

    É uma boa causa, XIIzinho, as laranjas andam por aí...
    Bj*

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  4. Só não entendo porque é que se deixa de acreditar nas coisas maravilhosas.As outras,por se acreditar nelas,prevalecem. Afinal de quem é a culpa do estado das coisas?Não será de quem deixa de acreditar?...

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  5. Claro que é de quem deixa de acreditar. Nem sei se pode chamar culpa a um estado de desassombro, que pode ser momentâneo ou para a vida...

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  6. A maioria das crianças,recupera muito mais facilmente de um estado débil de saúde,que os adultos.Precisamente por isso.Por ainda acreditarem.Por acreditarem em fadas que estão mergulhadas no soro para as ajudar,ou em animais mágicos que lhes sorriem para curar a dor...a diferença reside aí.Não deixam de acreditar (enquanto lutam),e de defender as suas ideias sem filtros,apesar da realidade ser outra(pelo menos aparentemente...).E, realmente,as coisas mudam.
    Podemos ser a diferença,e passamos a ser a indiferença.Não me conformo.
    (É estado para toda a vida.)

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  7. O meu comentário vai para os Area, banda que eu ouvi há muito, muito tempo numa cassete que me veio parar às mãos. Achei-os muito bons. Depois perdi-lhes o rasto (inclusive o nome da minha memória) e hoje fez-se luz. Obrigado pela lembrança!
    :)

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  8. Esta banda extraordinária veio 2X a Portugal. Em 76, Festa do Avante (heheheh eu na 1ª fila, claro) e em 78, Lisboa, Coimbra e Porto (fui aos 3 concertos heheheh). Internacional em rock progressivo, nunca mais me esqueci...

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