sexta-feira, 26 de março de 2010

Os Sonhadores da Ilha (memória do Verão Quente)


As cagarras rasgam o azul índigo do céu ao som invulgar de Ó-lha-Ó-lha-Ó-lha sobre a pequena enseada da Berlenga.

É Agosto, verão quente, passei de ano, e fui passar férias com os amigos com quem queria mudar o mundo.
A travessia no Cabo Avelar Pessoa foi o melhor baptismo de mar que podia ter. A ondulação suave e o vento favorável permitiram-me viajar na proa e ver centenas de caranguejos também em viagem à tona da água.
Eu era uma militante-sonhadora-crente, de mochila às costas e viola na mão, animada por um forte sentido de missão.
 

A imagem de Portugal nacionalizado, com terra, educação, paz e habitação, alimentava a ideia do lugar perfeito para se lutar e viver. A entrega de jovens como eu estava nas barreiras das estradas, nas pichagens de alerta pela madrugada, nos cordões-de-segurança em comícios e manifestações, na vigília que à noite as sedes precisavam, na fé do processo em curso.
 

A aproximação com o povo, fosse a abrir estradas, a roçar campos de silvas, ou a apanhar tomate, deu-me uma nova consciência das coisas. Nas sessões de esclarecimento do MFA percebia as carências das pessoas e isso motivava-me para qualquer esforço acrescido.
Muitos jovens iam de Berliet para povoações distantes em campanhas de alfabetização e dinamização cultural.
Ao serão havia cantigas e pão na mesa que alguém sempre oferecia.
Nas muitas viagens destas campanhas ouvi os cantares de homens e mulheres que diziam tudo o que eu não sabia.
 

Mas o PREC atravessava uma grande crise da qual eu não tinha total consciência. Achava que depois do 11 de Março e da tentativa de golpe, por parte do General Spínola, Portugal estava em perigo de se tornar um 2º Chile. As eleições não deram os resultados que se esperavam, a presença de Carlucci disfarçado de embaixador lembrava-me constantemente o 11 de Setembro de 1973 que matou Allende e milhares de chilenos. Ao mesmo tempo o Grupo dos Nove manifesta-se a favor da não interferência militar e as forças armadas ficaram divididas. O povo não queria o comunismo e eu não entendia porquê… o COPCON exercia pressão sobre o primeiro-ministro Vasco Gonçalves para se demitir. As ocupações sucediam-se a um ritmo acelerado bem como a violência do ELP (Exército de Libertação Português) braço armado do MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal) para as combater. As nossas sedes foram vandalizadas, os militantes feridos e outros perseguidos.
 

É este cenário que emoldura um grupo de jovens cheios de sonhos que naquele verão, numa aldeia de tendas, decide olhar as estrelas e ouvir as cagarras.  Pressentíamos que tinha chegado a hora de afirmar o que a nossa honestidade dizia para fazer. Assim, quando o telefone do café tocou logo de manhã para regressarmos à realidade, foi sem qualquer hesitação que desarmámos a "aldeia vermelha" e embarcámos na traineira.

A viagem de regresso foi muito diferente. O mar agitado parecia engolir-nos, mas a vontade de salvar o que estava quase perdido metia medo ao poder das ondas.
 

 
Deixámos para trás os mergulhos na gruta azul, as pescarias no mar alto, as conversas nas arribas, as corridas ao farol, o bairro dos pescadores, o princípio das descobertas, os planos que se fazem no verão em qualquer praia do mundo, os galeões afundados ao largo do forte de S. João Baptista, já habituado a tanta instabilidade; não fora o traidor que se passou para os espanhóis e talvez os 28 homens tivessem conseguido vencê-los. Ao fim de dois dias de luta renhida caíram exaustos e com eles o Cabo Avelar Pessoa.
 
Lembro-me de uma conversa, em jeito de despedida à ilha, com outro sonhador a quem perguntei se sentia medo. Respondeu que sim porque tinha consciência do que estava na origem da crise e das consequências que podíamos sofrer. No meu pensamento atravessavam-se as lágrimas e o sangue do Chile. Quantos jovens iguais a nós ficaram sem vida?

 
Os dias que se seguiram foram dramáticos. Cada um foi chamado para funções diferentes e o grupo da ilha separou-se.

Primeiro a cave de uma república, depois o sótão de uma casa.
A muralha acabou por ruir e ninguém ficou como era.


*
La Muralla, Quilapayún (Basta! 1969)

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