Passados
dois anos da separação surreal contada aqui e
com o 1º tratamento orientado pelo Dr. Allen Gomes,
voltou-me a coragem para acrescentar
algo à minha vida.
Voltei à música e ao convívio das pessoas que dela faziam parte. Não conseguia nem queria ter nenhum relacionamento. Não, depois do amor se ter desfeito como um vaso de barro mal cozido.
Voltei à música e ao convívio das pessoas que dela faziam parte. Não conseguia nem queria ter nenhum relacionamento. Não, depois do amor se ter desfeito como um vaso de barro mal cozido.
Nos finais de 1977 houve um concerto na Aula Magna que reuniu três grupos distintos: a Brigada Víctor Jara, da qual fazia parte; os Trovante (que integrei de 1979 a 1980) e a Banda do Casaco (com quem viria a descobrir novos horizontes cantando em dois álbuns, No Jardim da Celeste (1981) e Também Eu (1982).
Na
assistência estava alguém amigo de um dos membros da Brigada Victor
Jara, que me foi apresentado no fim daquela
noite memorável. Era
uma pessoa simpática que convidou o
grupo para uma ceia em sua
casa e que durante a noite
de convívio se mostrou muito espirituosa, inteligente, prestativa e
muito curiosa sobre a minha pessoa.
Trocámos
correspondência durante alguns meses e cada carta sua acrescentava
mais pormenores quanto ao
impacto que lhe tinha
causado, a voz no concerto, e os sentimentos incontornáveis que surgiram
daí. Talvez pela distância que me fazia sentir segura, comecei a dar atenção aos
pormenores das missivas
não só pela poesia representada, como pelo gosto estético que apresentavam. Colagens, pinturas, desenhos, tudo
à volta de um
enamoramento cada vez mais assumido de
quem os escrevia. A isto, creio, chama-se capacidade de sedução que
os meus verdes anos não sabiam
reconhecer. E passei
a gostar de receber essas
cartas que eram
enviadas dia sim dia não. Penso que o namoro começou a meio dessa
correspondência. Para uma mente traumatizada como
a minha, o facto de ser
cortejada desta forma (distância + arte multi-poética) foi decisivo
para deixar de ter tanto
medo dos rapazes e
acreditar, aos poucos,
que poderia
haver um amor mais bonito depois
do fracasso do primeiro. Foi, sem dúvida, a confirmação de uma ENORME excepção à regra do ditado popular "não há amor como o primeiro".
Mas
este sentimento, que ainda não era amor, lido ao longo dos meses, nas palavras que não
falavam de deveres para com a revolução, mas sim da urgência de
amar porque o mundo estava a sofrer uma enorme mudança, despertou
em mim uma crença, de que algo melhor podia
ser encontrado e que o
mesmo equívoco não se
repetiria.
Havia a experiência que tinha sido vivida e, agora, havia uma porta enorme que
se abria ao que ainda não tinha acontecido. Não achei que fosse uma forma de recompensa pelo sofrimento sentido, mas sim um começo verdadeiro e puro de um amor a construir. E acreditei. Acreditei em cada
palavra.
Os
primeiros meses da minha vivência com o Paulo foram muito felizes.
Ensinou-me muitas coisas nos livros que me sugeria, nas exposições
a que me levava;
pensava no meu bem-estar
quotidiano e
eram
frequentes
as
mensagens carinhosas
espalhadas pela casa, as
tertúlias que organizava para a
minha integração no
seu mundo, através do convívio com os seus amigos e amigas fascinantes;
no estímulo de outras
potencialidades que me reconhecia
(foi com ele que aprendi a trabalhar na câmara escura e
a descobrir-me mais intensamente no gosto pela fotografia);
na loucura saudável das gargalhadas cúmplices
quando descobríamos
Lisboa na sua vespa e, sobretudo, no respeito que demonstrava pelo que
eu era e pela minha arte.
Eu
sabia que a sua paixão era maior do que aquela
que eu podia sentir, mas à
minha maneira eu iria reaprender o que podia ser o amor.
Os
meses foram passando e começou a haver da parte de um
dos principais elementos
da família do Paulo, a
sua mãe, um nervosismo
desconfortável.
De início não terá ligado para aquela aventura porque seria, de certeza, uma coisa de semanas, sem importância nenhuma. Depois, passou a dar mais atenção ao caso que se prolongava já há meses, e as visitas surpresa, de observação ao objecto estranho, passaram a ser constantes.
Não era simpática, mas não era antipática. Sentia-lhe uma frieza imposta pela distância que me demonstrava, uma superioridade que eu não sabia classificar. Acho que ela vivia apavorada que o seu filho preferido ficasse com uma namorada cantora em vez de uma namorada doutora.
O Paulo era filho de um arquiteto e para arquiteto estava a estudar.
As mães querem sempre o melhor para os filhos e esta dava muita importância aos títulos antes do nome.
De início não terá ligado para aquela aventura porque seria, de certeza, uma coisa de semanas, sem importância nenhuma. Depois, passou a dar mais atenção ao caso que se prolongava já há meses, e as visitas surpresa, de observação ao objecto estranho, passaram a ser constantes.
Não era simpática, mas não era antipática. Sentia-lhe uma frieza imposta pela distância que me demonstrava, uma superioridade que eu não sabia classificar. Acho que ela vivia apavorada que o seu filho preferido ficasse com uma namorada cantora em vez de uma namorada doutora.
O Paulo era filho de um arquiteto e para arquiteto estava a estudar.
As mães querem sempre o melhor para os filhos e esta dava muita importância aos títulos antes do nome.
Ao mesmo tempo sentia-se uma tensão crescente
entre mãe
e filho e eu suspeitava
que, na minha ausência, haveria
muita pressão para as coisas tomarem outro rumo.
E chegou o dia em que descobri que
estava grávida. Não
tinha sido planeado, mas ambos sabíamos que podia acontecer. Pelas
contas o bebé nasceria em Junho ou Julho próximos
e falei abertamente com o
Paulo. Não sabia se ele queria ter uma família. E ele queria.
Apesar de ainda estudar, trabalhava no atelier do pai e
eu trabalhava com os Trovante. Tínhamos concertos e esta era uma
altura em que já não se tocava de graça.
A chegada deste bebé era muito abençoada e eu acreditei que agora estavam criadas as condições para ter a minha família. Aquela que eu muitas vezes anunciava aos meus pais, quando me sentia ferida por eles, que iria ter e que seria a coisa mais importante da minha vida.
A chegada deste bebé era muito abençoada e eu acreditei que agora estavam criadas as condições para ter a minha família. Aquela que eu muitas vezes anunciava aos meus pais, quando me sentia ferida por eles, que iria ter e que seria a coisa mais importante da minha vida.
A mãe do Paulo odiou a ideia e ficou
contra. Por arrasto alguns
dos irmãos também, com excepção do Zé Pedro, o único irmão do
Paulo que sorria, e do pai
João Maria que
gostava verdadeiramente de mim.
Não
vou contar a quantidade de situações irreais e dramáticas
que se desenrolaram a partir daqui, mas ainda hoje me lembro da frase
marcante da
matriarca que me disse à porta de casa: “não tem o direito de ter
um filho do meu filho. A única coisa sensata que deve fazer é
abortar. Você já foi casada.”
Mas o Miguel veio ao mundo num belo fim de tarde de Julho suave e sem dor,
uma das maiores alegrias que jamais havia experimentado, que apagou todos os contras.
O meu
menino, que passou a andar comigo para todo o lado, era
a minha verdadeira paixão e, talvez por isso mesmo, a vida com o
Paulo começou a deteriorar-se. A pessoa que tinha
sido foi mudando, alterou
o tom de voz, passou para
uma frieza seca parecida com a da mãe, até chegar
às
acusações sem fundamento que me ofenderam muitíssimo. Vida de
cantora, vida de promiscuidade, dizia.
Não queria acreditar no que
ouvia. Fazia muito esforço para desempenhar o meu papel de
profissional e de mãe. Cada dia era pior que outro, por vezes quando
chegava a casa depois de um ensaio ou de um concerto era recebida com
copos e pratos partidos. E um dia, depois de estar a filmar nas Guerras do Mirandum (do Fernando Matos Silva), na Tapada de Mafra, a seguir a ter levado o Miguel para ser filmado numa cena em que lhe dava de mamar, não encontrei ninguém em casa. Pai e filho não se encontravam. Esperei. Enervei-me. Telefonei para onde calculava que estariam. Sim, era aí que estavam, mas a ameaça veio de imediato: nunca mais o vês.
A razão assentava numa paranóia instalada na cabeça
do Paulo (e desconfio de
quem a provocou) que eu
estava envolvida com todos os elementos dos Trovante e com todos os actores do filme.
A pior coisa que se pode fazer a alguém é
culpá-la por algo que não fez.
Em 1979 as coisas eram muito diferentes. As influências existiam, mas os mecanismos de apoio eram quase nenhuns. E eu não sabia para onde me virar.
Em 1979 as coisas eram muito diferentes. As influências existiam, mas os mecanismos de apoio eram quase nenhuns. E eu não sabia para onde me virar.
A raiva tomou conta de mim. E por raiva então
envolvi-me. Fui magoada e iria magoar alguém, mesmo que me
desejasse o melhor. E foi isso que aconteceu. Só conseguia sentir frustração e mais raiva.
Mas o meu menino não vinha para mim e eu tinha de
pensar em algo que mo
devolvesse.
Regressei
para a humilhação da casa dos meus pais. Não me lembro de ter dito
uma palavra. Estava disposta a suportar o que fosse. Deixei tudo para
trás. Casa, trabalho, e
as coisas que me pertenciam.
Queria lá saber disso para alguma coisa. A minha mãe preocupava-se com o
destino do meu enxoval e das coisas que tinha oferecido para a casa. É
certo que muitas delas foram "guardadas" pelos familiares do Paulo, mas
isso não me interessava para nada.
Surgiu,
tempos depois,
uma possibilidade remota de poder ver o meu menino e voltei a Lisboa. Era só
para passear com ele no jardim da Gulbenkian, foram as instruções.
Sim, eu vou para o jardim. Mas em vez disso entrei num táxi e
fui para Santa Apolónia.
Apanhei o foguete para Coimbra e lá chegada telefonei a avisar que
de agora
em diante as coisas iam
mudar.
Fui ameaçada de tudo. O
Paulo enviava-me todo o ódio que tinha.
Apesar
de estar a salvo com o meu Miguel, não estava da inflexibilidade dos
meus pais que se tornou ainda mais rígida. Não era suposto, por
exemplo, levar o Miguel a uma esplanada
para conversar com amigos. O meu pai foi claro: tens cá o teu filho e
de agora em diante a tua vida vai ser como a de uma freira. Só vives
para ele e o resto não existe.
Estava
totalmente dependente deles. Económicamente, também. Aí estava a
factura de lhes ter dito
que um dia seria feliz com
a minha própria família.
E tudo o que eu fazia ao Miguel era criticado. Se o punha no
carrinho para o levar ao jardim, se lhe colocava o chapéu por causa
do sol, se lhe dava de comer aquela papa, era sempre tudo mal feito.
Fiquei
em Coimbra por mais uns meses até
que surgiu a oportunidade
de um emprego. Não me importava que fosse outra coisa que não
cantar. Tinha que sustentar o meu filho e a mim. A
proposta em questão era de tratar de uma casa de um jornalista do
Expresso. No fundo, era limpar-lhe a casa. E decidi que ia mesmo para as limpezas. Foi o descalabro. A minha mãe chamou-me de tudo. Mas
não me importei. Tinha as malas feitas e ia viver para
o meu bebé.
Levantaram-se
as vozes dos amigos da família e dos irmãos.
"A mãe não se sente bem e se lhe acontecer alguma coisa a culpa é tua".
"A mãe não se sente bem e se lhe acontecer alguma coisa a culpa é tua".
Já
na estação de Coimbra B jogaram a última cartada para me demoverem. O
enviado foi uma pessoa que eu respeitava muitíssimo e que me disse: Pelo
menos deixa cá o menino. A tua mãe está a chorar muito e sente-se
mal do coração. Já pensaste que vais carregar com o remorso para
toda a vida se ela morrer
ou ficar incapacitada? Deixa-o ficar por uns tempos e depois vens
buscá-lo. Faz isso, não te precipites com a tua atitude. Depois
vens buscá-lo. É por pouco tempo, até a tua mãe se habituar à ideia.
Não
sei o que me deu. O comboio estava quase a chegar e eu coloquei
o
Miguel ao colo do Dr.
Moura. Entreguei-lhe a mala com as coisinhas dele. “Não quero que
aconteça nada de mal à mãe. Mas eu volto daqui a 1 semana. Não
mais. E venho buscá-lo haja o que houver".
Parti
para Lisboa e comecei a trabalhar. Liguei
à minha irmã todos os
dias para saber do meu filho e na sexta também,
para combinar as horas a que chegaria a Coimbra no sábado. Ia
trazê-lo de volta como
estava combinado.
A minha
irmã diz-me, então, com uma voz estranha:
-
Não vale a pena, Né.
-
O que dizes?
-
Não vale a pena vires.
-
Não estou a entender. Dei uma semana, uma, para ele ficar e os
achaques da mãe se resolverem. Vou buscá-lo e acabou.
-
Não venhas porque ele já cá não está.
Parecia que tinha levado um soco e fiquei sem perceber o que tinha ouvido.
-
Não está como?
-
Os pais ligaram ao Paulo e ele veio buscar o menino.
Antes
de entrar em estado de choque lembro-me de ter perguntado:
- Porquê?
Porque fizeram isso?
-
Os pais disseram ao Paulo que não tinham vida para isto, para tomar
conta de um bebé, e que o melhor era ele
vir
buscá-lo
o mais depressa possível.
Desta
vez não regressei a Coimbra. Fiquei em Lisboa. Não fui parar a
nenhum internamento. Entreguei-me
à dor procurando em todas pessoas um afecto que me compensasse. Na
verdade isso nunca
aconteceu porque
me era tirado
algo mais, mas eu
permitia. Andei assim
meses. Foi a fase dos casos atrás de casos, mas sem me entregar nunca
a nenhum deles. Fazia-o para deixar
ficar um rasto de dor em
todos
e principalmente em
mim. Era a punição de ter acreditado
que podia ter a minha
família e ser feliz.
Durante
esse período fui
convidada para cantar na
Banda do Casaco. Gravámos
No Jardim da Celeste
que foi o éden
à margem da
minha autodestruição. Em
Argila
de Luz senti que
era eu. O António Avelar Pinho tinha escrito uma letra que, sem
saber, descrevia o estado da minha alma e do meu corpo.
Cresci
musicalmente com este
trabalho, mas estava um
farrapo psicológico e humano. Ninguém se apercebeu até que ponto. E quando
fui informada que não valia a pena ir a
tribunal para reaver o meu filho – já que tinham sido os próprios
avós maternos a entregá-lo ao pai – decidi sair de Portugal.
No
dia 17 de Novembro de 1981
, às 14:30, apanhei
o Sudexpress com uma
mochila às costas e a viola na mão. Procurava outro lugar, outra
vida.
Não fazia intenção de voltar.
Não fazia intenção de voltar.