Nunca é fácil olharmos para trás.
Tudo possui a dimensão aterradora de uma casa grande prestes a desabar.
No seu interior encontram-se vestígios de objectos que a fizeram bonita junto dos pedaços espalhados que pensamos ainda poder recuperar.
Este fim de semana tenho andado à volta disso e não consigo fugir mais.
Eu tinha 14 anos quando Abril chegou. Até à altura vivia sob uma fachada familiar com que nunca me identifiquei. A memória da minha tia/mãe que me criou era maior que qualquer pose que me diziam para assumir dali para a frente. Ela era amor, era perfume, era uma luz que se tinha apagado para sempre da minha vida.
As instruções e recriminações eram invariavelmente repetidas pelos motivos que achavam ser realmente importantes: "não nos envergonhes", "o que dirão os vizinhos", "o nome da nossa família vai ficar queimado", "o que é que te falta"? "dá-te por muito contente", "os filhos dos outros não são assim", e esse tipo de coisas que as pessoas dos cursos de cristandade, dos jantares de casais e retiros espirituais modelavam internamente para que do exterior se tomassem como exemplo e que tudo estava bem. Mas não estava.
Fui o caso típico da orfã que é "adoptada" por pessoas que não tinham a mínima habilidade para se adaptar a uma reviravolta da vida. Eu era a nova situação que nunca haviam esperado.
Tive um pai nervoso e explosivo.
Uma mãe egocêntrica e cheia de fobias.
Uns irmãos ausentes.
Havia a Maria, a "criada", que me dava colo e brincava comigo, mas a maior parte do tempo passava-o sozinha no meu quarto com as minhas 13 bonecas porque ela tinha uma casa para cuidar. Lembro-me das vezes que me dava colo onde eu me aconchegava aliviada enquanto ela passava a ferro.
A insegurança cresceu ao mesmo tempo que os meus dentes definitivos derrubavam os de leite e um profundo sentimento de inadaptação instalou-se daí para a frente.
Os motivos porque fui deixada ao cuidado da minha tia/mãe foram sempre ditos em forma de lamento que nunca senti sincero. Seja o que lhes tenha passado pela cabeça, deixaram-me com 1 mês, durante quatro anos, na casa dos avós maternos. Não me sentia obrigada a aceitá-los como eles queriam depois de ter perdido os melhores anos (curtos) da minha vida e de perceber que a minha chegada lhes tinha vindo complicar a vida.
Não gostava da casa, não gostava deles, não gostava do que me diziam, e do que me fizeram.
Gostava de ter podido aproximar-me mais do meu pai, que ele fosse o meu verdadeiro protector, mas normalmente era utilizado para ser o leão que rugia e metia medo. Durante muito tempo tive medo das suas reacções intempestivas que faziam tremer a casa, o meu quarto, a minha fragilidade de criança. Contudo, procurava sempre a sua aprovação, achava-o admiravelmente inteligente e culto, muito amável com as outras pessoas, um homem que voou durante anos pelos céus e que por isso achava estar mais perto daquela que me tinha sido levada.
A mãe nunca sujava as mãos, pose de senhora de família que nunca grita, nunca perde a compostura, que se queixa em surdina e instiga por trás sabendo que isso vai desencadear um episódio de grande irritação no pai, que passa uma imagem afável que toda a gente aprecia, que conta as estórias à sua maneira apagando sempre as suas injustiças e salvando a reputação de mãe preocupada e atenta, que a sua veia dramática proclama em público desejar dar a vida pelos filhos.
Os meus medos cresceram com o que me dizia, a minha insegurança com o que me incutia e mais tarde veio a revolta por nunca a ter sentido verdadeiramente como mãe.
Estás a saltar à corda dessa maneira? Vais morrer. O teu coração vai cair nos pés.
Estás sem chapéu na cabeça? Vais morrer por causa do sol e da meningite. Mãe, mas eu não quero morrer. E chorava perdida de medo. Passadas umas horas deste episódio na praia (teria uns 5 anos) fui ter com ela e perguntei-lhe: E agora? Vou morrer? Ainda vou morrer? Ela olhou-me de sobrancelha levantada e respondeu secamente. Não sei.
Nunca mais gostei da praia, das férias, das estadias na Figueira da Foz, das toilettes que ela envergava à noite para festejar a vida no casino peninsular.
Depois deram-se conta de que eu cantava bem e sabia todas a músicas que passavam na rádio. Ela, sobretudo, achava graça por eu subir pequenina a um banco e cantar com um microfone imaginário nas mãos porque os vizinhos vinham de seguida elogiar a voz e o dom. Ela aproveitava para divulgar que o seu grande sonho era ter sido cantora, mas os pais nunca a deixaram por não ser uma profissão de uma menina de boas famílias. Professora ainda vá que não vá, mas cantora nunca. Assim, dizia, revia-se em mim. E não faltou muito para eu ser inscrita nos festivais que o casino da Figueira da Foz organizava para os mais pequenos.
Calças estes sapatos, já disse. Mas eu não quero, fazem-me doer os pés. Vais cantar ao casino com estes sapatos, são bonitos. Além disso fazem-te o pé mais pequeno.
Passei a ir forçada e com medo de me enganar nas letras.
Estás outra vez doente, não é? Claro, não ouves o que eu te digo.
E enquanto as minhas anginas me atacavam todos os meses e os febrões levavam o médico lá a casa munido de uma caixa de seringas, o rol das indicações que eu não tomara em conta desfilava pelo quarto.
Estou a vê-la junto à porta, eu deitada na cama de ferro, ela afastada, irritada por eu estar doente, sem lhe apetecer contar uma estória ou fazer-me uma festa, sem paciência para lidar com aquela parte que não gostava porque sofria de hipocondrismo, e era a Maria com os seus caldos e a sua maneira beirã de falar que me entretinha como podia apaziguando o meu medo de morrer.
Passava as noites com pesadelos, não queria dormir, o medo dominava-me e como ela dizia às amigas que lhe perguntavam por mim, eu era uma criança olheirenta, magrita e amarelada com muita imaginação.
Aos 14 anos tornei-me rebelde, como ela gosta de frisar.
Foi do 25 de Abril e de se ter juntado aos comunistas - declara - Nunca mais foi a mesma. Até ali era uma criança sossegadita, obediente, mas depois mudou e fez o que quis. Não compreendo. Teve uma infância feliz.
E nesse confronto de personalidades, a dela mais protegida pelo apoio incondicional do seu marido, pelo coro dos outros filhos que me viam como a intrusa mal agradecida e responsável pelos achaques vários da mãe, é-me dito a sangue frio: Tu nem eras para ter nascido! - passando à explicação de algumas formas mal sucedidas de me abortar.
Agora compreendia tudo. Ter sido deixada no Porto, a irritação permanente, a impaciência, a falta de colo. A minha intuição não me enganara e eu tinha muitas razões para sentir esta infelicidade interior de abandono, o medo da morte omnipresente, a insegurança por me sentir diferente dos outros, o início da primeira depressão.
Estava com 16 anos. O primeiro relacionamento falhado depois de 1 ano de namoro e um casamento de 4 meses... a revolução em curso, ideais partilhados, um amor que mudou da noite para o dia por conta do álcool que ele não aguentava, a violência doméstica a que fui sujeita entre quatro paredes, a fuga inevitável para a casa paterna, único sítio possível de abrigo, com o resto da família a achar que eu tinha endoidecido por ter virado comunista, o marido que vem atrás de mim reclamar aquilo a que tem direito: voltar com ele para a luta. A tareia que levei por me ter recusado a segui-lo mesmo na sala ao lado onde pai e mãe se encontravam. A constatação que ninguém se levantou para me ajudar a impedir aquela humilhação. A minha irmã em avançado estado de gravidez interpondo-se, finalmente, entre os murros do Jorge e o meu corpo enrolado no chão. O silêncio que se fez depois disso. A minha ida ao hospital e o meu primeiro tratamento com o Dr. Allen Gomes.
O Jorge ficou sempre amigo dos meus pais e dos meus irmãos. Meses depois até me foi dito que era boa pessoa e que se calhar até teve razões para fazer o que fez... quando vinha de Castelo Branco visitava-os, e perante a minha incredulidade a mãe justificava : ele nunca me fez mal nenhum, porque havia deixar de lhe falar? Não podes ser assim...
Não pude ser nem ter mais nada. Comecei a procurar uma forma de me salvar.
Um dia, disse-lhes, vou ter a minha verdadeira família e ser feliz.
Eu ao colo da minha adorada tia/mãe Zira, ao lado a minha tia e madrinha Maria de Nazaré, a mãe junto do pai, e os meus avós Júlia e Acácio Sobral atrás
Sem dúvida, um princípio de vida tramada! Imenso respeito e admiração pela forma como a consegue descrever! A minha profunda solidariedade!!!
ResponderEliminarObrigada MGomes,
ResponderEliminarFalar para desatar os nós que me tolhem a vida.
Bem haja por entender
Força Né! Fiquei sem palavras :(
ResponderEliminarOs seus desabafos ajudam a si e a nós a desatar muitos nós da vida. Há quem sinta, mas não saiba como desata-los, e ao lermos, ficamos com a necessidade de fazer o mesmo!
Bem haja e muita força para "vencer" nesta estrada esburacada que é a Vida!