Estes dias têm sido de
alívio por um lado e de constrangimento por outro.
Alívio porque no
sítio onde estou sinto-me igual a quem está mal como eu. Constatar
que a depressão não escolhe sexo nem idades é, de certo modo, um
consolo egoísta que não me faz sentir tão sozinha, mas
simultâneamente assustador pelo que esta doença realça em cada uma
de nós.
Vejo diferenças nas
atitudes individuais não só devidas à medicação tomada, mas também pelo que está na origem de cada situação. Inexpressivas,
compulsivas, ansiosas, ausentes. Não há semelhanças entre ninguém,
apesar da vulnerabilidade biológica ser o factor comum despoletado por diversas
causas que cada uma carrega.
Temos aprendido nas sessões semanais de psicoeducação, que o factor biológico e o stress
são o ponto de partida para o que sentimos. Eu não sei se é bem
assim. Não sei se é o corpo que se zanga comigo ou se é a minha
emotividade que decide boicotar-lhe o desempenho. Há uma dor que não
é explicável e que nenhuma célula em seu perfeito juízo
arriscaria experienciar comprometendo o resto do complexo
funcionamento do seu grupo neste todo que é o corpo. Acredito que
temos dois tipos de cérebro e que o emotivo anula o racional em
determinadas alturas. Podemos ter um QI espantoso que não serve de
nada se confrontado por um QE deficitário, mas ganhador no combate interno.
Um dos realces destas sessões é a de que a medicação é necessária para corrigir as
alterações do funcionamento do cérebro, reduzir a tendência à
doença e melhorar a tal vulnerabilidade biológica.
Foi-nos ensinado que os
ansiolíticos (calmante que reduz a intensidade de um ataque de
pânico) e os hipnóticos (outro ansiolítico que induz o sono mais
rápido e anula de imediato a ansiedade) causam dependência; os
antidepressivos (para a ansiedade e humor depressivo) não a causam,
mas têm outros efeitos.
Sobre estas duas substâncias,
que conheço bem, confirmo que em tempos vivi a terrível experiência de desabituação do
Bialzepam, e
acrescento que o Effexor levou meses a ser retirado definitivamente do meu tratamento devido aos efeitos de carência, mesmo quando tomado em doses mínimas.
Desde choques eléctricos na cabeça e corpo, passando por tonturas e
náuseas, senti todo o seu lado medonho.
Tenho alguma relutância
em aceitar esta coisa da medicação. Não combina com o que sou.
Nunca tolerei drogas, detestei-as desde sempre e nunca achei que pudessem
fazer algo de bom por nós. Assisti a muitos exemplos ao longo da vida, estórias tristes de pessoas
que se deixaram manusear pensando que controlavam o que
faziam.
Ganhei-lhes ódio, às drogas, porque as vi vencer o amor, a família, a
própria vida de quem as consumia. Debato-me constantemente com esta
contradição, a de precisar de tomar drogas para me tratar. São
outras, eu sei, mas se sabemos os efeitos causados pela heroína,
cocaína, extasy, crak e por aí fora, não sabemos, com toda a
honestidade, os que estão escondidos em cada cápsula ou drageia que
nos é receitada. Os laboratórios não contam tudo e desconhecem, na verdade, o que
um medicamento pode fazer a longo prazo.
Algumas das internadas tomam estabilizadores de humor entre os quais alguns antiepilépticos para reduzir a tendência de suicídio e manter o humor estável.
Há uns
20 anos um psiquiatra irresponsável receitou-me um destes –
Tegretol – que eu tomava sem nunca me sentir melhor e, apesar das
minhas queixas, nunca ligou para o meu estado que se ia agravando, antes pelo contrário, aumentava a dose e dizia que era normal...
Suspeitando que algo se
passava de muito mau procurei outro psiquiatra que ao deparar-se com o
meu mal psicológico – depressão e sem qualquer tendência suicida - se indignou com o que me tinha
sido feito. O “desmame” foi muito doloroso, quase que enlouqueci,
passei muito tempo para me limpar do veneno que me tinha sido dado e
recuperar da minha magreza extrema. Durante muito tempo não desisti
de lhe mover um processo, mas fui sendo aconselhada para não o
fazer, que ia ser um escândalo, que o dito era amigo de amigos
comuns, que iria ser muito bem defendido, para esquecer e passar à
frente. De facto fi-lo, o desgaste contribuiu em muito para não denunciar a incompetência que me colocou em risco, mas o raivoso não se coibiu de contar em
público assuntos que haviam sido falados nas sessões. E odiei-o por todo o mal que me fez. Uma das marcas que ficou foi a da minha memória nunca mais ter sido a mesma.
Outras internadas tomam antipsicóticos para a ansiedade, desassossego,
insónias e depressão. A visualização do sofrimento é um emaranhado de emoções com diversas origens. Chega a ser esmagador olhar e sentir o peso da cruz que cada uma carrega quando mal podemos com a nossa.
Sinto constrangimento porque não sei interagir nas actividades de grupo e nem tenho vontade de falar com ninguém, não por serem quem são ou sentirem o que sentem, simplesmente porque já me desabituei de comunicar. Ficamos ilhas perdidas em pensamentos que não são os mesmos.
A L. tem um problema com os vizinhos, vive atormentada com os julgamentos sussurrados entre eles e o desejo de a verem dali para fora ; a V. sobrevive na agonia de não poder ajudar na doença do marido. Ela queria ter muito dinheiro para lhe comprar um rim novo que o deixasse ser o homem que foi; a P. procura o sossego do quarto às escuras para se proteger dos que lhe tiraram a profissão; a M. era uma mulher independente e resoluta até ao primeiro ataque de pânico que seguido de muitos outros a deixou incapaz de prosseguir com a sua vida promissora; a J. não ficou mais a mesma depois de uma gravidez psicológica que lhe custou um divórcio; a A. passou pelo trauma de ficar sem as filhas por estar doente e de cada vez que vê o ex-marido sente-se mal, tão mal que a sua ansiedade dispara para níveis extremos; a H. fica bloqueada pelos sintomas de todas as doenças que imagina ter. Refugia-se na cama e não quer saber do mundo.
A depressão é uma doença que nos deixa muito sozinhas.
No início precisamos desesperadamente que nos oiçam, depois percebemos que todos se afastam por não saber o que dizer ou fazer. Acabamos por
saber só estar mal connosco e criamos esse vínculo com a doença. Se
vêm com perguntas ou esboços de conversas a meio
desta hibernação forçada é muito difícil sairmos da concha. É o
que se passa comigo. Nas actividades de grupo quase não reajo. Jogos
para trabalhar a memória e reaprender competências no contacto com
os outros são extremamente desanimadores e penosos. Fico cansada e com uma vontade maior de recolhimento.
É preciso aprender
tudo, principalmente remover obstáculos e desmontar o pensamento
automático responsável pelo medo que toma conta de nós.
São tantos os factores
desencadeantes nas recaídas depressivas que é praticamente
impossível de as controlar; conflitos interpessoais, problemas
familiares, problemas no trabalho, dificuldades económicas, falta de
descanso, desocupação, alterações na vida, parar com a medicação,
instabilidade emocional, consumo de drogas, dúvidas existenciais,
falta de sentido para a vida... é com isto que cada pessoa tem de
lidar, é por causa disto que se cai e se fica sem nada, e é sobre
isto que as nossas fracas estruturas estão instaladas.
Realmente, como
defender o nosso pequeno mundo e o que desejamos que sejam os nossos
dias, gerir o stress, ter uma rede de suporte com quem possamos
partilhar o que sentimos, obter uma vida produtiva e organizada,
prosseguirmos com os nossos planos e concretizá-los, sermos
objectivos e sonhadores, como? Se tudo o que o mundo desconstruído
nos permite é respirar o aterro em que vivemos?
Nota: Existe uma biblioteca no internamento que me tem valido por tudo. Nestes dias reli Como Água para Chocolate, Siddhartha e A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile.
Querida Né
ResponderEliminar«From Gardens Where We Feel Secure»
terra
água
ar
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fauna
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todo este céu
sempre
estrelas *****
boa noite
bons sonhos
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da tua voz
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bom dia
boa tarde
alhur
aqui
ânimo
@br@ço
beijos
até
já
Querida né, tenho acompanhado os teus relatos e quero que saibas que o que se vê, daqui deste lado, e uma mulher extremamente lúcida, a quem sobra coragem para compensar o desgaste de uma doença (que eu conhecia mal). Compreendi que não posso ajudar muito, mas acredito que mostrar a minha presença solidaria sempre te possa fazer algum bem.
ResponderEliminarBj
Agradeço a solidariedade da vossa presença.
ResponderEliminarO facto de ter decidido falar desta fase da minha vida foi devido ao facto de não nos atrevemos a dizer o que somos e sentimos por medo de sermos julgados e perdermos oportunidades na vida à conta disso. O preconceito, a pena e outros géneros de marginalização de quem passa por isto, estão profundamente enraizados na sociedade. É fácil tirar competências a uma pessoa que sofre de depressão. É fácil argumentar que não serve para assumir responsabilidades. Normalmente vem de quem tem esqueletos no armário e na área musical, concretamente, há muitos que decidem por-nos fora do baralho enquanto se entregam a vícios e dependências muito mais degradantes.
Quanto a mim já não tenho nada a perder porque o que perdi foi muito.
Agora, chega de faz-de-conta.
Se isto puder fazer com que mais alguém se deixe de esconder com o receio de ser descoberto e denominado de "maluco" já terá valido a pena.
Abraço sincero