sábado, 11 de maio de 2013

Duas semanas depois

Estes dias têm sido de alívio por um lado e de constrangimento por outro. 
Alívio porque no sítio onde estou sinto-me igual a quem está mal como eu. Constatar que a depressão não escolhe sexo nem idades é, de certo modo, um consolo egoísta que não me faz sentir tão sozinha, mas simultâneamente assustador pelo que esta doença realça em cada uma de nós.


Vejo diferenças nas atitudes individuais não só devidas à medicação tomada, mas também pelo que está na origem de cada situação. Inexpressivas, compulsivas, ansiosas, ausentes. Não há semelhanças entre ninguém, apesar da vulnerabilidade biológica ser o factor comum despoletado por diversas causas que cada uma carrega.
 

Temos aprendido nas sessões semanais de psicoeducação, que o factor biológico e o stress são o ponto de partida para o que sentimos. Eu não sei se é bem assim. Não sei se é o corpo que se zanga comigo ou se é a minha emotividade que decide boicotar-lhe o desempenho. Há uma dor que não é explicável e que nenhuma célula em seu perfeito juízo arriscaria experienciar comprometendo o resto do complexo funcionamento do seu grupo neste todo que é o corpo. Acredito que temos dois tipos de cérebro e que o emotivo anula o racional em determinadas alturas. Podemos ter um QI espantoso que não serve de nada se confrontado por um QE deficitário, mas ganhador no combate interno.
 

Um dos realces destas sessões é a de que a medicação é necessária para corrigir as alterações do funcionamento do cérebro, reduzir a tendência à doença e melhorar a tal vulnerabilidade biológica. 
 

Foi-nos ensinado que os ansiolíticos (calmante que reduz a intensidade de um ataque de pânico) e os hipnóticos (outro ansiolítico que induz o sono mais rápido e anula de imediato a ansiedade) causam dependência; os antidepressivos (para a ansiedade e humor depressivo) não a causam, mas têm outros efeitos.


Sobre estas duas substâncias, que conheço bem, confirmo que em tempos vivi a terrível experiência de desabituação do Bialzepam, e acrescento que o Effexor levou meses a ser retirado definitivamente do meu tratamento devido aos efeitos de carência, mesmo quando tomado em doses mínimas. Desde choques eléctricos na cabeça e corpo, passando por tonturas e náuseas, senti  todo o seu lado medonho.

Tenho alguma relutância em aceitar esta coisa da medicação. Não combina com o que sou. Nunca tolerei drogas, detestei-as desde sempre e nunca achei que pudessem fazer algo de bom por nós. Assisti a muitos exemplos ao longo da vida, estórias tristes de pessoas que se deixaram manusear pensando que controlavam o que faziam. 

Ganhei-lhes ódio, às drogas, porque as vi vencer o amor, a família, a própria vida de quem as consumia. Debato-me constantemente com esta contradição, a de precisar de tomar drogas para me tratar. São outras, eu sei, mas se sabemos os efeitos causados pela heroína, cocaína, extasy, crak e por aí fora, não sabemos, com toda a honestidade, os que estão escondidos em cada cápsula ou drageia que nos é receitada. Os laboratórios não contam tudo e desconhecem, na verdade,  o que um medicamento pode fazer a longo prazo.


Algumas das internadas tomam estabilizadores de humor entre os quais alguns antiepilépticos para reduzir a tendência de suicídio e manter o humor estável.
Há uns 20 anos um psiquiatra irresponsável receitou-me um destes – Tegretol – que eu tomava sem nunca me sentir melhor e, apesar das minhas queixas, nunca ligou para o meu estado que se ia agravando, antes pelo contrário, aumentava a dose e dizia que era normal...

Suspeitando que algo se passava de muito mau procurei outro psiquiatra que ao deparar-se com o meu mal psicológico – depressão e sem qualquer tendência suicida - se indignou com o que me tinha sido feito. O “desmame” foi muito doloroso, quase que enlouqueci, passei muito tempo para me limpar do veneno que me tinha sido dado e recuperar da minha magreza extrema. Durante muito tempo não desisti de lhe mover um processo, mas fui sendo aconselhada para não o fazer, que ia ser um escândalo, que o dito era amigo de amigos comuns, que iria ser muito bem defendido, para esquecer e passar à frente. De facto fi-lo, o desgaste contribuiu em muito para não denunciar a incompetência que me colocou em risco, mas o raivoso não se coibiu de contar em público assuntos que haviam sido falados nas sessões. E odiei-o por todo o mal que me fez. Uma das marcas que ficou foi a da minha memória nunca mais ter sido a mesma.

 
Outras internadas tomam antipsicóticos para a ansiedade, desassossego, insónias e depressão. A visualização do sofrimento é um emaranhado de emoções com diversas origens. Chega a ser esmagador olhar e sentir o peso da cruz que cada uma carrega quando mal podemos com a nossa.

Sinto constrangimento porque não sei interagir nas actividades de grupo e nem tenho vontade de falar com ninguém, não por serem quem são ou sentirem o que sentem, simplesmente porque já me desabituei de comunicar. Ficamos ilhas perdidas em pensamentos que não são os mesmos. 

A L. tem um problema com os vizinhos, vive atormentada com os julgamentos sussurrados entre eles e o desejo de a verem dali para fora ; a V. sobrevive na agonia de não poder ajudar na doença do marido. Ela queria ter muito dinheiro para lhe comprar um rim novo que o deixasse ser o homem que foi; a P. procura o sossego do quarto às escuras para se proteger dos que lhe tiraram a profissão; a M. era uma mulher independente e resoluta até ao primeiro ataque de pânico que seguido de muitos outros a deixou incapaz de prosseguir com a sua vida promissora; a J. não ficou mais a mesma depois de uma gravidez psicológica que lhe custou um divórcio; a A. passou pelo trauma de ficar sem as filhas por estar doente e de cada vez que vê o ex-marido sente-se mal, tão mal que a sua ansiedade dispara para níveis extremos; a H. fica bloqueada pelos sintomas de todas as doenças que imagina ter. Refugia-se na cama e não quer saber do mundo.

A depressão é uma doença que nos deixa muito sozinhas. No início precisamos desesperadamente que nos oiçam, depois percebemos que todos se afastam por não saber o que dizer ou fazer. Acabamos por saber só estar mal connosco e criamos esse vínculo com a doença. Se vêm com perguntas ou esboços de conversas a meio desta hibernação forçada é muito difícil sairmos da concha. É o que se passa comigo. Nas actividades de grupo quase não reajo. Jogos para trabalhar a memória e reaprender competências no contacto com os outros são extremamente desanimadores e penosos. Fico cansada e com uma vontade maior de recolhimento.
 
É preciso aprender tudo, principalmente remover obstáculos e desmontar o pensamento automático responsável pelo medo que toma conta de nós.

São tantos os factores desencadeantes nas recaídas depressivas que é praticamente impossível de as controlar; conflitos interpessoais, problemas familiares, problemas no trabalho, dificuldades económicas, falta de descanso, desocupação, alterações na vida, parar com a medicação, instabilidade emocional, consumo de drogas, dúvidas existenciais, falta de sentido para a vida... é com isto que cada pessoa tem de lidar, é por causa disto que se cai e se fica sem nada, e é sobre isto que as nossas fracas estruturas estão instaladas.

Realmente, como defender o nosso pequeno mundo e o que desejamos que sejam os nossos dias, gerir o stress, ter uma rede de suporte com quem possamos partilhar o que sentimos, obter uma vida produtiva e organizada, prosseguirmos com os nossos planos e concretizá-los, sermos objectivos e sonhadores, como? Se tudo o que o mundo desconstruído nos permite é respirar o aterro em que vivemos?



Nota: Existe uma biblioteca no internamento que me tem valido por tudo. Nestes dias reli Como Água para Chocolate, Siddhartha e A Aventura de Miguel Littín Clandestino no Chile.

 

3 comentários:

  1. Querida Né

    «From Gardens Where We Feel Secure»

    terra
    água
    ar
    fogo
    fauna
    flora
    firmamento
    todo este céu
    sempre
    estrelas *****
    boa noite
    bons sonhos
    madrugada
    manhã
    música
    luz
    da tua voz
    sol
    sorriso
    dança
    bom dia
    boa tarde
    alhur
    aqui
    ânimo
    @br@ço
    beijos
    até

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  2. Querida né, tenho acompanhado os teus relatos e quero que saibas que o que se vê, daqui deste lado, e uma mulher extremamente lúcida, a quem sobra coragem para compensar o desgaste de uma doença (que eu conhecia mal). Compreendi que não posso ajudar muito, mas acredito que mostrar a minha presença solidaria sempre te possa fazer algum bem.
    Bj

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  3. Agradeço a solidariedade da vossa presença.

    O facto de ter decidido falar desta fase da minha vida foi devido ao facto de não nos atrevemos a dizer o que somos e sentimos por medo de sermos julgados e perdermos oportunidades na vida à conta disso. O preconceito, a pena e outros géneros de marginalização de quem passa por isto, estão profundamente enraizados na sociedade. É fácil tirar competências a uma pessoa que sofre de depressão. É fácil argumentar que não serve para assumir responsabilidades. Normalmente vem de quem tem esqueletos no armário e na área musical, concretamente, há muitos que decidem por-nos fora do baralho enquanto se entregam a vícios e dependências muito mais degradantes.

    Quanto a mim já não tenho nada a perder porque o que perdi foi muito.
    Agora, chega de faz-de-conta.
    Se isto puder fazer com que mais alguém se deixe de esconder com o receio de ser descoberto e denominado de "maluco" já terá valido a pena.

    Abraço sincero

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