Holoteta é uma pessoa ligada ao computador da nave espacial que, através dos seus pensamentos, dirige a sua deslocação "por meio de um conjunto estabelecido de curvas através de uma série conhecida de configurações". Algumas holotetas transcendem a mera experiência de ligação com o computador. in O Bailado das Estrelas de Spider e Jeanne Robinson (1979)
quarta-feira, 30 de dezembro de 2009
segunda-feira, 28 de dezembro de 2009
Bolha de Sabão
A fase introvertida dos dias deu lugar à participação. Uma nova vida chamou por todos e todos quiseram estar no epicentro dos acontecimentos por motivos diferentes. Hastearam-se bandeiras, exacerbaram-se coisas não tão importantes, mas que o eram, seguiram-se à risca estatutos de stencil, apagaram-se pessoas que faziam parte dos afectos, mas não das cores envergadas. No caos dos corredores ensaiaram-se lutas saídas da banda desenhada, noites de vigília, palavras na rua, cordões de segurança, sustos de morte, salas magnas, campos de batalha, ambições à espera, ideais com urgência. Tempos que uns quantos podem lembrar, não todos, porque pelo caminho ficou-lhes a verdade. A verdade dos justos, essa, perpetua e inspira a mudança seja em que espiral do tempo for. Os muros inventados para dividir ideias desabaram. Então e depois. A verdade veio à superfície como óleo derramado, uma imensa mancha de cruezas e humilhações alastra e impregna-se em todas as cidades do mundo.
Víctor Jara cantou antes de ficar sem mãos - Somos cinco mil aquí en esta pequeña parte la ciudad. Somos cinco mil.¿Cuántos somos en total en las ciudades y en todo el país? (16 de Setembro de 1973)
O luto da América Latina…
Víctor Jara cantou antes de ficar sem mãos - Somos cinco mil aquí en esta pequeña parte la ciudad. Somos cinco mil.¿Cuántos somos en total en las ciudades y en todo el país? (16 de Setembro de 1973)
Dentro da bolha de sabão o mundo testemunha a carnificina. Não se atreveu a deixar de ser uma bolha, embora persista na rotação da dor e se lembre dos retratos na moldura. Não é um sofrimento breve, mas uma consciência que se duplica nas teias do pranto. Frente ao espelho, sem reflexo, quem se esqueceu?
108 checos e eslovacos mortos + 300 000 exilados e refugiados;
108 checos e eslovacos mortos + 300 000 exilados e refugiados;
200 000 bósnios mortos + 1 326 000 refugiados e exilados;
2 600 chineses mortos na Praça da Paz Celestial + 7000 a 10 000 feridos e um sem número de presos;
30 000 argentinos “desaparecidos” das Mães da Praça de Maio;
450 000 em Darfur;
100 000 no Iraque;
O canto tem fendas de onde os fantasmas partem. Tem alfabetos que doem sob as línguas. O que dele fica é tudo o que pedimos para ser.
*
Solo le Pido a Dios, Mercedes Sosa (Mercedes Sosa en Argentina, 1982)
2.000 00 no Vietnam…
O cortejo de algarismos não cessa, incontrolável monstro, maior que todos os dragões das lendas, o céu e a terra sob o seu cuspo de fogo, incompreensível o rasto raiado de riscos falsos no mapa.
Pero tú no sufriste? Yo no sofrí. Yo sufro sólo los sufrimientos de mi pueblo. Yo vivo adentro, adentro de mi patria, célula de su infinita y abrasada sangre. No tiengo tempo para mis dolores (Pablo Neruda, 1949)
O grito inerte já se transformou em vento amaldiçoado que atravessa o que foi agora. A que distância estamos da dor?
Canto, qué mal me sabes cuando tengo que cantar espanto. Espanto como el que vivo como el que muero, espanto. De verme entre tantos y tantos momentos de infinito en que el silencio y el grito son las metas de este canto. (Víctor Jara, 16 de Setembro de 1973)
O canto tem fendas de onde os fantasmas partem. Tem alfabetos que doem sob as línguas. O que dele fica é tudo o que pedimos para ser.
Le pido al Señor, durante toda la semana mientras voy recogiendo el clamor del pueblo y el dolor de tanto crimen, la ignominia de tanta violencia, que me dé la palabra oportuna para consolar, para denunciar, para llamar al arrepentimiento (excerto da Homilia de Monsenhor Oscar Romero, 23 de Março de 1980. Foi assassinado, no dia seguinte, enquanto celebrava a Eucaristia)
*
Solo le Pido a Dios, Mercedes Sosa (Mercedes Sosa en Argentina, 1982)
domingo, 27 de dezembro de 2009
Todos Diferentes, Todos Iguais - reflexão sobre a cultura artística em Portugal
A cultura artística está intimamente relacionada com a experiência humana que provém, por sua vez, de uma vivência histórica comum. As pessoas que a compartilham têm aspirações de um futuro seja qual for a sua visão sobre o mesmo. No caso específico de Portugal tem havido um enfraquecimento sucessivo da produção cultural e uma crescente carência de vínculos dentro da comunidade. Para essa construção futura diversificada é necessária, também, uma memória histórica, memória essa que se encontra debilitada.
Perante esta evidência de fraqueza, em que nos encontramos, a imposição de outras manifestações culturais ganham espaço. Conscientes ou não, iniciámos uma travessia desértica de auto estima, que nunca esteve tão baixa, assim como uma incapacidade de defesa em relação aos interesses nacionais. A diversidade cultural é bem vinda desde que dialogue com a identidade cultural específica. O que não é o caso. A nossa realidade colectiva está sob a direcção predominante de uma cultura invasiva, não só ao nível ideológico, técnico e social como em várias manifestações artísticas. A ideia geral é a de que nos encontramos num imenso atraso cultural sendo necessário recorrer a fórmulas externas para preencher esta lacuna. Esquece-se que as fórmulas foram elaboradas numa realidade histórica e social diferentes da nossa, e que rejeitam a possibilidade de um desenvolvimento cultural próprio.
Em Portugal há muitas expressões artísticas que se devem considerar. Em todas as valências a sua manifestação tem dependido de uma originalíssima criatividade individual (que existe sem margem para dúvida), do nível técnico de quem a executa (adquirido apesar da falta de condições) e da frustrante incapacidade na sua difusão que é praticamente nula e detrói qualquer incentivo artístico.
Seja na cultura erudita ou popular a máquina dos meios de comunicação desliga-se da função social que deve desempenhar. O que existe e chega ao público, numa assustadora maioria, é o formato mercantilista da cultura-de-pastilha-elástica. Salvo honrosas excepções que nos identificam em pequenas clareiras mundiais, a exportação e o consumo interno passa pelo “Mateus Rosé” artístico, que não é o melhor vinho como se sabe, que esta terra produz… e o estrangeiro que desconhece a produção de qualidade opina sobre o que consome, coisa que é recebida com admiração e respeito pelos portugueses.
Vejamos o exemplo das fórmulas de sucesso que pintaram o rosto do nosso país com cores que não são exactamente as únicas que lhe pertencem, do destino, da tristeza, da tragédia e melancolia, quando se sabe que o nosso perfil psicológico é constituído por muito mais do que isso.
Também se verifica que uma parte da produção artística se rege sob as normas dessa cultura importada o que leva a esquecer a nossa língua e o trabalho que poderia ser dado a muitos criadores de palavras. Cantar em inglês é provinciano e demonstra uma enorme falta de personalidade. O registo argumentativo, que se repete com a ideia de conquistar o mercado internacional porque o inglês é uma língua universal, está gasto. Apontar defeitos à nossa língua como sendo difícil de cantar é absurdo. Como explicar, então, que os estrangeiros sintam a fonética do fado? Não é preciso travesti-lo para possuir um lugar próprio no mundo. Justo seria até que se alargasse a outros estilos e géneros porque se há local do planeta em que existe variedade musical de raiz é, sem dúvida, o nosso país.
A miopia das sucessivas políticas culturais surtiu numa constante desculpa de descendermos deste conteúdo genético e de termos tido um passado.
Aprendemos a ter vergonha de ser como somos e enquanto este processo auto destrutivo decorre não há uma vontade política para o parar. Até agora não se construíram os instrumentos essenciais para competir com a cultura estrangeira que utiliza as multinacionais para controlar e influenciar o mercado. Pelo contrário! Permitiu-se que às mesmas fosse dado o direito de decidir sobre o “catálogo nacional”, despedir artistas, pressionar carreiras, impedir que uma série de criadores desafie os seus limites. Verdadeira colonização a que nos sujeitámos, de negociar entre 25 a 40% de música portuguesa nas rádios. E negociámos com quem? Com que poder?
Continua-se a investir em programas degradantes, que estimulam a banalidade, a violência, o culto do corpo, uma virtualidade que não se adapta à nossa realidade e apela ao consumismo exacerbado. O desejado plano para o desenvolvimento económico, político e social nunca será, deste modo, nem justo nem duradouro.
Sem medidas de fundo, que passem por uma legislação competente e uma educação verdadeiramente preocupada com o futuro, torna-se cada vez mais difícil preservar o património material e imaterial, incentivar a produção artística, e recuperar uma sociedade desvalorizada.
Diversidade cultural é a via para que, todos diferentes, todos iguais, tenhamos consciência da nossa identidade.
Perante esta evidência de fraqueza, em que nos encontramos, a imposição de outras manifestações culturais ganham espaço. Conscientes ou não, iniciámos uma travessia desértica de auto estima, que nunca esteve tão baixa, assim como uma incapacidade de defesa em relação aos interesses nacionais. A diversidade cultural é bem vinda desde que dialogue com a identidade cultural específica. O que não é o caso. A nossa realidade colectiva está sob a direcção predominante de uma cultura invasiva, não só ao nível ideológico, técnico e social como em várias manifestações artísticas. A ideia geral é a de que nos encontramos num imenso atraso cultural sendo necessário recorrer a fórmulas externas para preencher esta lacuna. Esquece-se que as fórmulas foram elaboradas numa realidade histórica e social diferentes da nossa, e que rejeitam a possibilidade de um desenvolvimento cultural próprio.
Em Portugal há muitas expressões artísticas que se devem considerar. Em todas as valências a sua manifestação tem dependido de uma originalíssima criatividade individual (que existe sem margem para dúvida), do nível técnico de quem a executa (adquirido apesar da falta de condições) e da frustrante incapacidade na sua difusão que é praticamente nula e detrói qualquer incentivo artístico.
Seja na cultura erudita ou popular a máquina dos meios de comunicação desliga-se da função social que deve desempenhar. O que existe e chega ao público, numa assustadora maioria, é o formato mercantilista da cultura-de-pastilha-elástica. Salvo honrosas excepções que nos identificam em pequenas clareiras mundiais, a exportação e o consumo interno passa pelo “Mateus Rosé” artístico, que não é o melhor vinho como se sabe, que esta terra produz… e o estrangeiro que desconhece a produção de qualidade opina sobre o que consome, coisa que é recebida com admiração e respeito pelos portugueses.
Vejamos o exemplo das fórmulas de sucesso que pintaram o rosto do nosso país com cores que não são exactamente as únicas que lhe pertencem, do destino, da tristeza, da tragédia e melancolia, quando se sabe que o nosso perfil psicológico é constituído por muito mais do que isso.
Também se verifica que uma parte da produção artística se rege sob as normas dessa cultura importada o que leva a esquecer a nossa língua e o trabalho que poderia ser dado a muitos criadores de palavras. Cantar em inglês é provinciano e demonstra uma enorme falta de personalidade. O registo argumentativo, que se repete com a ideia de conquistar o mercado internacional porque o inglês é uma língua universal, está gasto. Apontar defeitos à nossa língua como sendo difícil de cantar é absurdo. Como explicar, então, que os estrangeiros sintam a fonética do fado? Não é preciso travesti-lo para possuir um lugar próprio no mundo. Justo seria até que se alargasse a outros estilos e géneros porque se há local do planeta em que existe variedade musical de raiz é, sem dúvida, o nosso país.
A miopia das sucessivas políticas culturais surtiu numa constante desculpa de descendermos deste conteúdo genético e de termos tido um passado.
Aprendemos a ter vergonha de ser como somos e enquanto este processo auto destrutivo decorre não há uma vontade política para o parar. Até agora não se construíram os instrumentos essenciais para competir com a cultura estrangeira que utiliza as multinacionais para controlar e influenciar o mercado. Pelo contrário! Permitiu-se que às mesmas fosse dado o direito de decidir sobre o “catálogo nacional”, despedir artistas, pressionar carreiras, impedir que uma série de criadores desafie os seus limites. Verdadeira colonização a que nos sujeitámos, de negociar entre 25 a 40% de música portuguesa nas rádios. E negociámos com quem? Com que poder?
Continua-se a investir em programas degradantes, que estimulam a banalidade, a violência, o culto do corpo, uma virtualidade que não se adapta à nossa realidade e apela ao consumismo exacerbado. O desejado plano para o desenvolvimento económico, político e social nunca será, deste modo, nem justo nem duradouro.
Sem medidas de fundo, que passem por uma legislação competente e uma educação verdadeiramente preocupada com o futuro, torna-se cada vez mais difícil preservar o património material e imaterial, incentivar a produção artística, e recuperar uma sociedade desvalorizada.
Diversidade cultural é a via para que, todos diferentes, todos iguais, tenhamos consciência da nossa identidade.
sexta-feira, 25 de dezembro de 2009
Gaudete! Gaudete! Christus est natus
Gaudete! gaudete!
Christus est natus ex Maria virgine,
gaudete!
Tempus adest gratiae, hoe quod optabamus;carmina laetitiae devote reddamus.
Deus homo factus est, natura mirante;mundus renovatus est a Christo regnante.
Ezecaelis orta clausa per transistur;unde lux est orta, salus invenitur.
Ergo nostra contio psallat iam in lustro;Benedicat Domino; salus regi nostro.
Deus homo factus est, natura mirante;mundus renovatus est a Christo regnante.
Ezecaelis orta clausa per transistur;unde lux est orta, salus invenitur.
Ergo nostra contio psallat iam in lustro;Benedicat Domino; salus regi nostro.
por Oxford Camerata de Piae Cantiones - compilação de Theodoric Petri editada em 1582
quinta-feira, 24 de dezembro de 2009
quarta-feira, 23 de dezembro de 2009
Dia de Eddie Vedder
jeena kaisa pyar bina [what is life without love?]
is duniya mein aaye ho to [now that you have come to this world]
ek duje se pyar karo [love each other, one another]
jeena kaisa pyar bina [what is life without love?]
is duniya mein aaye ho to [now that you have come to this world]
ek duje se pyar karo [love each other, one another]
look in the eyes
of the face of love
look in her eyes
oh, there is peace
no, nothing dies
within pure light
only one hour
of this pure love
to last a life
of thirty years
only one hour
so come and go
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
Caminho dos Rios
Meio suspiro de cansaço leva-me de autocarro à cidade. Gente conformada, sem compras, nem fogão, nem cortinas, sem quem lhes seque o suor de dias e dias, que entra à força na minha roupa, nos meus livros, no meu espanto. A minha atenção amarra-se em tanto desamor, tanto desperdício. Mulheres na sua maioria condenadas à brutalidade do destino, aos filhos perdidos, às lutas sem causa, ao lixo acumulado no canto do quarto, ao barulho da desatenção do mundo.
Fito-as magoada e elas retribuem-me num desconsolo confessado. Não têm homens verdadeiros, mas animais sôfregos, não encontram lares tranquilos, mas pardieiros atulhados. Da janela vou a pique para o Jardim Botânico que de longe me promete um verde cintilante na cinza do dia. Consigo fugir e volto para trás. Não as posso deixar, não por enquanto. Se descobrissem a sua árvore, o seu canteiro, o seu bicho e se se deixassem trespassar pela doçura, poderiam saltar juntas os muros da dor e seguir outro destino.
Ao longe há outras mulheres, não como estas, sem o sangue pisado na voz e a alma a cheirar a lixívia. Essas outras sorriem e acenam, cantam numa língua desconhecida uma melodia de ninar. Enrosco-me como um gato com frio, trepo-lhes para o colo e adormeço até ficar sem nenhum colo para ter.
O autocarro segue lotado com os filhos que gritam tiranias às mães e as mães que sacodem os filhos como sacos de compras vazios. Estão exaustas as mulheres. Levantaram-se de cama sem uma palavra murmurada, sem memórias de um café partilhado, sem homens risonhos que as abracem, sem lhes ter ocorrido sequer a ideia de uma aventura impossível. Ali vão como gado para o matadouro, os seus ventres deformados e indistintos, se são de velhas ou de novas, olheiras encostadas aos varões do autocarro, roupa com nódoas, unhas repintadas, um perfume-do-chinês misturado com um beijo fora de prazo que lhes amarga a boca.
São heroínas, são guerreiras, são rainhas coroadas por dores que não fazem parte da estória. Nasceram já gastas pelo uso e acabadas pela carência. Vão ficando pelo caminho, nas paragens, nos passeios, nas portas dos fundos a servir um género de mundo que não se sujeita a vê-las, seguem sem saber que a um gesto seu tudo mudaria, assim o escolhessem e o quisessem e os homens verdadeiros amá-las-iam como nos filmes franceses.
Volto com urgência ao livro que troquei por aquele mundo de privações. Preciso chegar a tempo daquele encontro narrado que há-de ser para a vida e para a morte. O autocarro parou, olho para a porta, olho para o livro. Estou nesta margem porque quero chegar à "raíz-firme-das-coisas". Quero saber todas as horas para além do que existe quando nos damos a tudo. Saio, não saio, a paragem a ficar para trás, uma poça de lama, quero terra firme, gastar palavras descuidadas, orientar-me no escuro, dar um sentido de permanência a pequenas coisas. Preciso de fazer a viagem rio acima, rio abaixo, porque estes são tempos de cólera e o amor é a hera que rebenta da pedra.
Há vozes que nos prendem por pequenos detalhes. Respirações, dicção, timbres e grandes interpretações. Não utilizam o excesso de potência para se afirmarem como grandes. O que nos fica é um contínuo arrepio mesmo depois do silêncio. Assim se tornam intemporais, como é o caso desta.
*
Hard Love, June Tabor (Angel Tiger – 1992)
Hard Love, June Tabor (Angel Tiger – 1992)
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
Protesto II
Ok, dei-lhe tempo suficiente. Fui uma felina cheia de paciência, calma e sangue frio. Tentei que as coisas fossem ao lugar e ele ficasse no seu lugar, o que até nem seria difícil, se fosse um felino a sério... mas não. Os dias passam e nada muda. Um estouvado foi o que trouxeste para casa, um estouvado com pilhas que nunca acabam. Agora tomou-me de ponta, acha-me distante (claro!), superior (é evidente!), da realeza (sem dúvida que sim, tenho sangue abissínio da 4ª geração) e porque sou uma gata especial inferniza-me a vida. Estou a ficar à beira de um esgotamento. Olha bem para a minha cara, vês estas rugas? Sim, aqui junto aos bigodes. Até ficaram mais descaídos e porquê? Por causa dele!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! K E R O U A C . Até me arrepia o nome. Não digas que tenho mau feitio, que tenho a mania da perseguição. Gosto de coisas que os gatos vulgares não gostam e devo ser respeitada. Não quero fazer exercícios forçados a correr e a saltar como uma louca à frente dele, não quero passar o tempo debaixo do móvel à espera que lhe passe o vipe, que é a todas as horas do dia, não vou tapar o que ele deixa por cima da areia, não nasci para escrava! Não o quero no nosso quarto e tu tens muito a mania de o trazer ao colo como um bebé e depositá-lo ao meu lado. Já sabes que nessas alturas fico danada e saio porta fora. Prefiro ficar sozinha na sala a ter que dormir sobressaltada ao lado desta coisa que nem sei como chamar. Ele lá e eu cá. Isto não é a casa-da-Joana... eu quero as coisas como estavam, com sol ou com chuva e poder estar na varanda o tempo que quiser, os livros e cadernos espalhados na secretária e cheirá-los à minha maneira, a tampa do portátil aberta e eu deitada sobre as teclas a fazer a sesta, as manhãs de sábado a investigar os sacos de compras como sempre fiz, sem intromissões, ficar dentro da banheira horas infinitas a brincar com o chuveiro ... podia fazer uma lista de razões, mas já chega. Não quero que tenhas nenhum desgosto, por isso estou a miar há uma série de tempo e não é para me fazeres festinhas por baixo do queixo, é para ver se entendes que se isto não muda saio de casa. Ai saio, para nunca mais voltar. Olha aqui, olha para isto. Estou pela ponta dos meus pêlos, que eram negros sim, eram, olha o tufo branco que me apareceu.
sábado, 12 de dezembro de 2009
O Rumor da Borboleta
«Atenienses, vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: 'Ao Deus desconhecido. ‘ Pois bem! Aquele que venerais sem o conhecer é esse que eu vos anuncio. “ Act 17:16-23
O sorriso iluminou-se num gesto de agradecimento e lembrou o motivo que a conduziu àquele lugar. Ajoelhou-se sobre a erva orvalhada ao mesmo tempo que o rio passava entre as margens sinuosas.
Sabia que algures um bosque de carvalhos a aguardava em silêncio sob a agitação do vento. O vento, força irredutível sibilante, desafiava o rumor da borboleta. As suas asas ora pairavam como estilhaços de porcelana ora se uniam no puzzle concluído. Nestas alturas todas as evocações felizes levam para longe qualquer fim ameaçador. Deixar existir um sonho que se transporta em condições adversas sem nenhum fragmento destruído é tarefa delicada. Porque os temporais não são coisas que se inventem, eles existem neste nosso mundo. Não é o relâmpago que assusta, mas a sua própria natureza de relâmpago.
Encostou o rosto à terra, sentiu-lhe o coração vindo das profundezas e pensou como seria se se anichasse no ínfimo intervalo entre a luz e a sombra. Com que intensidade iria essa luz e sombra passar por aqueles que viajam à janela de um comboio?
Recuperou o folgo e decidiu subir pelo carreiro e escalar fragas com os pés descalços. Inspirou o silêncio na estrita observância dos charcos de água, das metamorfoses internas, do granito e da vigília dos astros e sentiu um imenso amor por tudo o que existe.
Uma folha itinerante chegou à terra, um coração incendiado levantou voo. Querer ser tudo ainda não sendo nada… Uma voz de reza ergueu-se dos blocos escarpados. Absorvida naquele mistério, a meio do ermo crepuscular, olhou em volta cheia de infinito. Que solidão deslumbrante a sua na paisagem! Emana da terra uma mística esculpida de névoa. Lágrimas azuis misturam-se na harmonia e palavras ocultas são desvendadas.
Recitou baixinho (...) E, nos seus olhos dum negro sério e místico, sorria a infância, a idade de oiro. A saudade aprende a escutar as vozes do silêncio, uma poesia transcendente que chega à face dupla do céu; uma que se liga às raízes, outra que repousa na harmonia. A memória interpreta a profecia como a autêntica realidade, o mistério da alma e das coisas… em tudo se revê na origem do que parte e do que chega.
Surgiu uma legião, não a que entrou por terras lusas... uma outra que desceu dos céus da avenida de Roma. Havia quem dissesse que ensaiavam ali para não fazer barulho em casa, mas eu acho que foram as canções. Queriam seguir as primeiras estrelas da noite e derramar-se sobre todas as coisas visíveis e invisíveis.
*
Música: Sétima Legião - A Um Deus Desconhecido, 1984
quinta-feira, 10 de dezembro de 2009
quarta-feira, 9 de dezembro de 2009
Ary
Se o poeta fosse vivo teria feito 73 anos. Dia 7 de Dezembro, Rua da Saudade...
Poeta castrado não!
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Poeta castrado não!
Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
Da fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
(É assim que o recordo!)
sexta-feira, 4 de dezembro de 2009
Voz de Dentro
A lembrança suspensa por um fio cola-se à nostalgia desvanecente. Enrolada em mim, testa nos joelhos, braços em cruz, punhos fechados, vejo imagens confusas através da parede. Já quase sem as poder distinguir apuro o ouvido. Se um dos sentidos não está aferido outro tornar-se-à preciso. Preciso saber que lugar ameno é este. Quanto tempo? Quase 273 dias… Cansa-me esta imensidão aquática. Não vejo o sol nem a lua. Não vejo para fora. Episódios vagos tracejam uma forma de vida nómada, faminta, colorida, de movimentos que aqui não consigo manter coordenados. Dançava entre o deserto, meu mundo, e alguns oásis de madrepérola rara. Uma icharb ondulante deixa revelar cabelos de Henna. A salguta instiga o bendir. Os snujs afugentam os maus espíritos. Uma rota talhada como o nay. Um sopro divino uno.
Não me apercebi da mudança, mas já anseio pelo que ainda não sei.
Algo me acalma. Parece ser uma voz. Sim, canta para dentro. Quero espreguiçar, abrir estes braços, desfazer esta forma de novelo que sou, preciso estender-me como o deserto. A voz junta-se a outras. Alegram-me e entristecem-me.
Numa madrugada abafada fiquei ansiosa. A voz que cantava para dentro calou-se. Senti um tumulto de águas medonhas. Tive medo, tive curiosidade. Havia dor e foi a primeira que senti. Fui lançada e puxada. Vozes indistintas troaram aos meus ouvidos. Viraram-me de cabeça para baixo, aprendi o primeiro choro. Não conheço ninguém. Embrulham-me em panos que não são abaias. Mas, o que são abaias? Estava a lembrar-me de quê? Algo suave como uma mão faz-me festas na cara. Sinto o perfume de jasmim e rosas de uma memória antiga que agora volta ao princípio.
" É uma menina! Tem olhos de amêndoa."
Um som curioso distingue-se do resto. Sei o que é. Música! Mas que música?
Chegou-me ontem da América - diz o pai para a mãe - Está a ser um sucesso enorme por lá, dizem-me que não toca outra coisa na rádio! É cá um artista este Elvis, um bocado selvagem, enfim… Sabias que lhe chamam Elvis the Pelvis? Nunca lhe podem fazer plano americano, só da cintura para cima… estás a vê-lo aqui todo aprumado de farda? … Se quiseres ponho outro disco no pick- up. Se calhar é melhor não é?... estás a recuperar do parto... Ella Fitzgerald... vais gostar! Tu sempre preferiste vozes de contralto.
*
Música
Oum Kalsoum - El Sett, 1936
Elvis Presley - A Big Hunk O' Love (1959)
Ella Fitzgerald – My Old Flame (Radio Recorders Hollywood, 1959)
Glossário
Icharb – Lenço que as mulheres usam na cabeça
Salguta – grito das mulheres berberes usado em casamentos e despedidas
Bendir - pandeiro grande feito de pele de cabra e madeira
Snujs – pequenos címbalos usados na dança do ventre
Nay - instrumento de junco simples, com as duas pontas abertas, com 5 a 7 (mas normalmente 6) furos, sem bocal.
Abaia – capa de lã beduína usada à noite para aquecer.
Música
Oum Kalsoum - El Sett, 1936
Elvis Presley - A Big Hunk O' Love (1959)
Ella Fitzgerald – My Old Flame (Radio Recorders Hollywood, 1959)
Glossário
Icharb – Lenço que as mulheres usam na cabeça
Salguta – grito das mulheres berberes usado em casamentos e despedidas
Bendir - pandeiro grande feito de pele de cabra e madeira
Snujs – pequenos címbalos usados na dança do ventre
Nay - instrumento de junco simples, com as duas pontas abertas, com 5 a 7 (mas normalmente 6) furos, sem bocal.
Abaia – capa de lã beduína usada à noite para aquecer.
terça-feira, 1 de dezembro de 2009
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