quarta-feira, 30 de junho de 2010

Almost Blue



Às vezes, nos céus, vemos estrelas que choram o brilho que perderam.



Nos mesmos céus outras estrelas traçam acasos.
Depois acabam por se fundir com o Universo de onde não saem mais.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Por dentro do âmbar




 Seis meses depois de todos os astros boreais a palavra celebrou-se sobre o silêncio da casa. No recanto da sala visiono o que quero levar e o que posso deixar. As janelas de vidro duplo deixam entrar uma claridade ainda trémula, que surge da tundra.

Foi longa esta permanência, talvez a maior que vivi. O norte possível, o mais norte de tudo, a extensão de beleza e silêncio como a madeira que se combina com o fogo, encerrou este ciclo lunar. A caminho de outros caminhos de ouro, arriscando recifes e outras amplitudes, vou-me desabitando da metade da cama, das escadas de madeira, da entrada tapada pela neve, do adeus (pre)destinado, do ritual dos fiordes, do reflexo (so)lícito, das portas que se fecharam e se abriram à passagem de tanta esperança.

A paisagem matizada sobre o pano branco e macio deu-me a noção do traço. Posso premeditar lugares e sortes até fazer vontade à vontade de chegar. Posso soltar-me das memórias mais dóceis, sobreviver ao inferno raso da nostalgia, criar texturas diversas de palavras consoante o voo e o tempo. Em qualquer cidade posso resistir às sombras e feridas que teimam em não sarar. Se eu quiser posso ser árvore no concreto e multiplicar-me nos céus. Se eu deixar, a luz pode descer sobre qualquer rosto adormecido ou acordado. Posso devolver-me ao silêncio como um grão de pólen que se desfaz sem paciência gasta, sem cair em dias vazios, sem arrastar o mundo para o luto, sem ter medo de dormir. Posso construir-me, asas tranquilas, sobre a busca extensa porque nada acaba aqui. Há mais exílios voluntários, névoas com voz de reza, sílabas preciosas e dores reencarnadas com um fim.

Sou refúgio e clarão, escombros e raiz, desequilíbrio e consistência. Há um Graal, o absoluto, uma nova alegria de dentro, dialectos que anunciam a passagem transparente, e línguas que falam de um tempo intermédio. Há anjos renascidos que implodem no universo e estrelas deslumbrantes que invadem angústias num fenómeno natural. O medo é superado pela entrega. Um salto sobre os muros do real e chega-se ao trilho. Vida devolvida, nada a temer. Dentro da minha garganta surgem palavras cintilantes dos poetas, e das florestas de coníferas uma respiração pausada.

Dentro do âmbar expirado há mundos de fungos e insectos. Olham-me de novo eu mais atenta que eles. O lugar onde tudo se passa em câmara lenta onde cada objecto é reencontrado sem o menor esforço nem distracções. O sábio disse que "os impactos de amor não são poesia"*. Não sabia. Essa forma de pernoitar em despensas casuais não fez mais do que me apertar o coração contra a parede. Chego atrasada às lágrimas, permaneço roda de um moinho de vento, sou passageira em trânsito até poder dançar com estátuas que sintam só através de mim. À lama e à luz agradeço. E se me grita uma aflição de saber que o tempo não vai esperar abro as asas de cera da minha alma.

Olho para a terra a 36 mil pés de altitude. Desconheço outra perspectiva senão no momento de levantar voo. Há penas cinzentas no chão do país dos espelhos. A neve regressa sobre os refugiados que partiram de nenhures como eu. Recorda-lhes as cortinas esvoaçantes das janelas pintadas de branco e o som do violoncelo que sai delas. A voz fatigada dos exilados brinda às recordações com gotas de rosé.

Desprendo-me do cinto de segurança. Peço uma água mineral e um café enquanto inspiro as últimas folhas do caderno preto. A 36 mil pés de altitude do que conheço as palavras abstêm-se de conversar. Faço um círculo mágico para as canções brilharem no escuro e se estenderem sobre espelhos inquebráveis. Seguro a beleza do âmbar entre as mãos.
Posso olhar para mim agora.


* excerto retirado de Conclusão de Carlos Drummond de Andrade in Fazendeiro do Ar, 1969


ao som de: Came So Far for Beauty - Leonard Cohen (Recent Songs, 1979)

domingo, 20 de junho de 2010

Passion Fruit


And the day came when the risk it took to remain tight inside the bud was more painful than the risk it took to blossom.

Anaïs Nin

sábado, 19 de junho de 2010

Amuleto




O ar gelado e o vento que vem de norte encontram-me no centro da cidade. Este é o dia em que a terra parou assim que me alheei do medo e procurei pela rapariga dos lagos de gelo. Tenho-a na memória desde sempre, um grande pedaço de paisagem em celulóide, rosto pálido, ar convalescente, descendo a colina como um pássaro estival sob o céu nu e parado. Para recuperar o fôlego agarra o amuleto que traz ao peito e invoca a palavra miraculosa. Sem voz dá voz a encontros silenciosos. Podemos ser como ela. Acreditamos que é todas as raparigas escondidas na mulher fatal e angustiada que descansa depois da descida. Conseguirá escapar? Tornar-se corsária de exílios e encontros de toda a espécie?

Alguém lhe disse que o amor é um amuleto, que a protegeria dos grandes espaços e do esquecimento. Traz vários ao peito, um colar com muitas voltas, pedras de canções e de filmes em formatos diferentes, um pouco pesado, dizem, mas ela gosta de se enfeitar com eles. Esta rapariga tem uma alma muito vivida e parece mais velha do que é. Começou por vender chapéus convencendo qualquer um que lhe assentavam bem. Era tão persuasora que foram espalhadas fotografias por todo o país - uma alma assim permanece pouco tempo no mesmo lugar – porque muita gente dependia das vendas de mais chapéus.

Olhei para o centro da cidade sem almas possivelmente adormecidas pelas altas horas da noite e reparo que o modesto T3 sem água quente, da Blekingegatan, fora demolido. Tiro uma fotografia ao Greta's Krog Bistro a pensar que as casas importantes não têm qualquer pretensão de um dia, num momento qualquer, desaparecerem na incerteza de terem sido habitadas.

Ninguém abraça a rapariga do filme, ninguém lhe pergunta se a vida lhe corre bem, se precisa de companhia ou de comprimidos para dormir. Aplaudiram-na na altura, há muito tempo, ofereceram-se para a acompanhar até à esquina e beijaram-na como se beija uma rainha. Mas porque os dias se tornaram como os outros dias, todos iguais, acabando por morrer, deixaram de aparecer e de pensar nela. Decidiu, então, sair de Blekingegatan e desfez-se de chapéus, da espuma de barbear, dos bolos de pastelaria e dos sapatos de domingo. Mudou-se para as traseiras do teatro Moseback onde ficava, horas a fio, a espreitar pela porta dos artistas.

 
Quando se apagava a última luz da rua olhava os veleiros que se dirigiam para o Báltico. De lá atiravam-lhe velhas canções de marinheiros que ela apanhava com a voz suave, a voz inaudível de todos os imaginários, aguardando por uma resposta. Isso nunca aconteceu. Não há respostas para almas impronunciáveis e fugidias que chegam num dia, partem no outro e arrasam triunfos insignificantes.

Animada por uma direcção aleatória a rapariga decidiu escrever uma página da sua vida. Sentiu necessidade de o fazer pela chama que se acendia numa alegria vagarosa. Alhear-se das imagens a que se acostumara, fora da estrada amarga. Nos subúrbios de Odengaten compreendi a rapariga resplandecente. Recolhera-se na meia-luz subterrânea com o telefone desligado e sem campainha na porta. Construíra o isolamento possível para as memórias tombarem da mesma forma que a neve solene se desprende dos telhados da cidade.

Acendeu-se um semáforo vermelho neste quase fim de tour em frente ao Dramaten Teatern. A mulher fatal acabou de entrar no palco onde encarnará uma mulher da rua em Den osynlige*. Passou a achar divertidos os papéis tristes que representava. No início sentia-se relutante, tinha dificuldade em dormir a pensar que atraía mágoas a mais. Depois experimentou despi-las como vestidos de noiva e lavava-as com paciência noite após noite. Inclinava-se para o público com o rosto irisado de maquilhagem, murmurando tack tack… här är underbart…Jag förtjänar inte**…

Amavam-na naqueles momentos, amavam a sua beleza quer fosse falsa ou sincera. Foi assim que se tornou mito e lenda. Um dia quando tudo corria bem, colocou o amuleto guardado e caminhou na imensidão boreal. Descobriu pela primeira vez de que era feita e decidiu nunca mais voltar.


ao som de Sweetheart, Marianne Faithful (Dangerous Acquaintances -1981)

*
Peça de Pär Lagerkvist, representada por Greta Garbo em Outubro de 1924

**
Obrigada…obrigada… isto é maravilhoso… eu não mereço…

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Este é o meu fim e o teu



O pássaro da alma voará
E deixará o corpo desabitado
A relva crescerá sobre o túmulo,
E talvez desabroche uma flor.


Abdullah Ansari
Poeta persa nascido em Herat, no século XI

terça-feira, 15 de junho de 2010

Çarandilheira e algumas memórias

Foto de Susana Paiva (em Montesinho)

A caminho de Picões com o rio Sabor a acompanhar :)

Póvoa - Miranda do Douro

Foto de Susana Paiva

Adélia Garcia (Foto de Susana Paiva)

A burrica de Deilão

Em Miranda do Douro

Esmeraldino Raposo Fernandes (pauliteiro de Malhadas)

Acampada em Santo Antão da Barca junto ao Sabor onde fiz a primeira recolha sonora: um concerto de relas (4/07/93)

Foto de Susana Paiva

Pauliteiros de Constantim

Foto de Susana Paiva - Caçarelhos: as fiandeiras

Vista sobre o vale do Sabor

Em Montezinho ( Foto de Susana Paiva )

Foto de Susana Paiva - Em Caçarelhos com Adélia Garcia (filmagens de Çarandilheira)

Foto de Susana Paiva

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Dia de Che

Fidel, infelizmente, aparece nestas imagens. Na época talvez fosse um sonhador, mas sem Che deixou de servir causas para servir somente o seu Ego. Humildade e entrega foram-se quando Ernesto partiu deste mundo.

Devotion

quinta-feira, 10 de junho de 2010

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Sessão de estúdio Nação Viralata no santuário Blasted Mechanism ;)

Hummmmm deixa lá ouvir primeiro...

Um dia faço-te o mesmo, vais ver!

Impossivel estar quieta e sugadita... Há música que nos faz mexer, então...

"Bulgaridades" e outros gritos berberes

Quando ouvirem o tema vão querer fazer o mesmo!!!!

Dominique Borde

Na régie à escuta do take

yeah ma man!!!

AH!AH!AH!

João "mano rute" heheheheh

Nuno WINGA Patrício ;)

Acho que foi das primeiras a ser usada pela banda

Ou foi esta?

Mais um dos fantásticos costumes dos Blasted

Eu acho que isto foi em 2001... Festival do Tejo.

Altamente ;)

ATITUDE!!!!!

domingo, 6 de junho de 2010

Metamorfose eterna


A cidade cerca-me. Coisas frenéticas, opacas, e diferentes ocupam lugar ao  inexistente necessário. Esta enchente consumida em arritmias pesa-me na paragem do autocarro, nas saídas do metro, na parede do museu e nela fico a pensar o resto do tempo. A enchente consome a cidade, a cidade-alvenaria-das-enchentes permanece mesmo que um dia desapareça noutra enchente. Camden, os punks, os góticos, os pubs, as lojas de roupa em 2ª mão… Roundhouse o lugar mítico do psicadelismo onde os Pink Floyd actuaram em 66. London calling, o Tamisa a encher a cidade, a cidade condicionada pelas enchentes de erros perigosos, por acidentes ocorridos a milhas de distância, que causam danos impensáveis.




A ideia é a de ir errando pelos passeios e atravessar, por enquanto, as passadeiras, constatar o impacto da ausência, apesar do pó levantado, olhos adentro. Na montra há vestígios do que foi outra enchente. Uma série de fotografias antigas. Estranhas e fascinantes. Rostos da altura em que os rostos faziam parte de alguém, tão diferentes destes, também fascinantes, difíceis de traduzir, sem fundo, sem voz, por vezes sob legendas, estranhamente forçados a fazerem parte de todo o mundo. Dentro do cerco londrino caminha-se sem tomar parte de nada. No tempo dividido, que todos parecem conhecer, há um espaço onde se escava uma espécie de liberdade que escapa à maioria. A enchente procura uma aprovação de olhares, um destroço feliz e os desafortunados perguntam: Quem de facto amou? Com pressa agarram-se ao bordão da felicidade possível, lavando em virtudes as suas feridas. Os olhos desaprovam o avanço feito e por dentro da fina cerâmica, onde a enchente se esconde, ouve-se partir o objecto. Dele se desprende a atenção isolada que tenta uma proximidade no gesto. Não é simples juntar partes da vida. Nem tempo nem contratempo permitem retomar o solo quase perfeito.




Descobre-se que passámos uma vida a procriar paisagens dentro de espaços insustentáveis. Quem de facto amou? Redesenha-se a forma imprecisa de uma nova matéria, que não se desgaste e desapareça. Tudo parece certo. O ritual de quem cumpre o seu destino e a enchente que parece feliz. O barco leva personagens pelo Regent’s Canal, passa um avião no céu, os gatos preguiçam do interior das janelas, os poetas sentem-se inspirados e eu, entre o Tamisa e o invisível, estudo os contrastes. Desdobram-se convites sem exigências, chamam-me para que siga as estrelas-do-mar e me converta à metamorfose eterna. Mas quem amou de facto a esse ponto? Penso em Virgínia de solidão vestida caminhando no destino desapegado da terra. Dona de si ou presa nas suas visões? A vigília do confronto sem soluções. A demência na moldura que acaba por ceder às mensagens imprudentes do desejo.

 


Primeiro e último momento.
A ausência chama-nos por sermos incapazes de desprender o tempo de uma ordem necessária. O falso pode ser verdadeiro, a ciência o milagre. Ainda me restam vestígios de pedras nos bolsos, o caderno sem folhas regista uma viagem à revelia do corpo e um eco de infância deposita-se nas margens. O Tamisa galga a alvenaria da cidade cheia, os Mohawks desobedecem aos compromissos diários, os enamorados tiram polaroids com a Torre de fundo, e a cera do museu esconde a imperfeição humana.

 



Quanto dura a paixão pela vida? Virgínia mergulhou determinada para o espaço interior e dança ao som da eternidade com paixão, contra a sombra infeliz que ficou deste lado. Os erros sucedem-se, revelam-se na câmara escura, ficam em todas as fotografias, sobre eles há quem escreva canções e ensaios. Não se sabe, de facto, quem amou Virgínia.

 

Não sabemos quem amamos. Se alguma vez nos amaram. Essa impressão de amor é abatida pelas cidades que conjugamos nos perfis assimétricos que nos passam ao lado, almas riscadas como fósforos  que nos queimam entre os dedos.
Achamos que despertamos sempre a desatenção com uma pequena luz acesa.


* ao som de The Passion of Lovers, Bauhaus (Mask , 1981)

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Oração


EU SOU O QUE SOU.
EU SOU TUDO O QUE SOU.
EU SOU TUDO O QUE SOU E TUDO O QUE É.
EU SOU UM COM TUDO.