Não escrevi nada sobre a noite dos Caravan Palace porque as olheiras e a dor de costas tomaram conta da ocorrência, o que me obrigou a ficar em casa. Mas ontem, nem que tivesse de me arrastar, precisava de ir! A noite avistava-se concorrida, logo a barraquinha tinha de ter todos os braços disponíveis. E também porque era a noite do Paulo de Carvalho.
O Paulo marcou-me particularmente no festival de 1971 com Flor Sem Tempo. Esta canção passou a fazer parte do meu reportório caseiro e foi das primeiras a ser tocada na 1ª viola que tive. Nessa altura formava com a minha amiga de escola, Anabela Tavares, um duo com o nome sugestivo de Girls. Mais tarde passámos a ser as Love Peace and Tears. Flor Sem Tempo, Blowin' in the Wind, The Needle and the Damage Done, Wild Horses... a sonoridade e atitude dos 70 que nós ouvíamos e gostávamos de cantar.
Voltando à Flor sem Tempo, já de si uma bela canção, teve o efeito que teve em mim por causa da voz do Paulo, que me deixava de boca aberta. Deixava a qualquer um!
É a melhor voz masculina de sempre. Não tenho qualquer dúvida sobre isso.
Lembro-me dos discos dos Sheiks tocarem nas festas lá de casa e o Paulo começar com "Tell me, tell me bird..." e a dança se desenfrear mais. Era a loucura dos Beatles e dos Sheiks! Os meus irmãos "twistavam" e eu acompanhava, claro! Usávamos muito essa canção nas viagens infindáveis entre Coimbra e Riodades (as férias grandes eram MESMO grandes: 1 mês de praia, 1 mês de campo e distâncias agravadas por péssimas estradas). Eu e a minha irmã cantávamos a duas vozes e bisávamos ao longo daquele tédio rodoviário, para não o sentirmos tanto...
Quando surgiu E Depois do Adeus, que ganhou a dimensão que conhecemos, a carreira do Paulo estava mais que consolidada e era, como é hoje, a Voz da música portuguesa. A minha mãe afirmava de forma peremptória, de quem nunca se engana (uma forte característica da sua personalidade): " se este rapaz fosse americano era maior que o Frank Sinatra e olhem que para mim é Deus no céu e Frank Sinatra na terra!"
O Paulo fez sempre o que quis com aquela voz que Deus lhe deu. Surpreendeu sempre pelas suas interpretações. Escreveu canções como ninguém e inventou o etno-urbano! A explicação desta designação foi revelada pelo próprio numa entrevista ao Correio da Manhã:
"Comecei por cantar pop-rock com os “Sheiks”, depois cantei ligeira e mais tarde um rock-funky-jazz, porque gosto de experimentar novos desafios, mas acho que baralhei o meu público. Percebi que estava a fazer tudo errado e a partir de 1985 achei que me devia preocupar mais com as minhas raízes. Se eu sou de Lisboa e a música da cidade é o fado, decidi partir deste e misturá-lo com os sons de culturas a que estamos ligados há séculos e a africana é uma delas. E é esta a música que estou a fazer e a que chamo etno-urbana. Portanto a minha música do futuro é etno-urbana, designação que inventei."
O Jardim estava cheio, o Paulo cantou como nunca, comunicou de forma espontânea e cheia de humor. Iniciou com Flor sem Tempo (eu parei o que estava a fazer por razões óbvias) e continuou com as canções que compôs nestes 47 anos de carreira.
O público cantou com ele e festejou.
Ele merecerá sempre cada aplauso.
Já festa finda e com os jantares todos servidos (e se houve movimento!!!) os refrões ainda se entoavam pelo jardim, uns em forma de assobio, outros com letra completa. Já era dia seguinte quando me pus a caminho de casa a cantarolar a letra que ficou:
Gostava de estar aí
A ver o que se passa aqui, no palco
P’ra não fazer juízo errado
Pois isto de cantar,
É muito mais difícil
Cá deste lado
Às vezes vocês daí
Nem sonham o que vai pra’qui, no palco
Nem pensam que na vossa frente
Quem canta, que vos diz as coisas
Também é gente
Gente que trabalha,
Como um Carpinteiro
Como um Camponês
Ou como um Mineiro
Gente que faz o trabalho
Como faz amor,
Amor verdadeiro
Gente que vos diz,
Que a canção sou eu,
A canção és tu,
Por isso cresceu
A canção é p’ra vocês,
E só p’ra vocês,
A canção nasceu