Eu - Que comboio é este?
Um - Não sou de cá, não posso dizer.
Outro - Correu por aí que vai para longe para uma paisagem desconhecida.
Um - Vai? Onde posso arranjar os horários? Nunca se sabe quando volta a passar outro...
Outro - Eu soube por acaso, se bem que não acredite muito nisso, no acaso…
Eu - Daria para chegar a tempo?
Um - A tempo de quê?
Outro - De ser feliz, talvez...
Eu - Preciso de o apanhar… mesmo que pare em todas as estações e apeadeiros.
Outro - Achas que deves arriscar? Afinal não sabemos o horário e se chega mesmo a ir!
Um - Isso ninguém sabe, mas é melhor acreditar que vai chegar ao sítio certo.
Outro - Eu não conheço nenhum sítio que seja certo.
Eu - Vou arriscar! Entre o que sobra da vida e o desterro há-de haver um lugar onde eu caiba.
Outro - E nesse sítio tens algum encontro marcado?
Um - Os sem carácter estão em todos os sítios...
Eu - É.... a minha avó dizia o mesmo.
Um - E valerá a pena?
Eu - Estou atrasada... não sei se tenho tempo para pensar na resposta.
Outro - Que não seja por isso! Podes dizer enquanto te acompanho. Exactamente para onde?
Eu - Não sei... ainda...
Um - Que tempos estes... as pessoas andam sem direcção, não se conhecem, e marcam encontros indecisos.
Eu - Se apanhar este comboio acho que não volto.
Outro - Assim não posso ir contigo.
Eu - Porquê?
Outro - Porque tenho a certeza que não vai chegar onde queres.
Eu - Ou porque estás com medo...
Um - Ele não costuma ser assim tão irónico, a não ser que esteja a arrumar o sótão...
Eu - Talvez intua e esteja certo. Deitar fora e limpar, ao invés de escolher e guardar é hilariante!
Outro - Evito perder-me, é isso.
Eu - Sim, é muito cansativo...
Um - Se é....
Outro - O que é verdade é que há outros comboios.
Eu - Pois há, mas vão esgotados de conversas que não querem sair.
Um - Tu, a declamar a certeza absoluta.
Outro - É por isso que levas essa máquina fotográfica e o caderno preto na mão?
Eu - Sim, porque nunca tenho a certeza de nada.
Enquanto espero, já depois de Um e de Outro terem seguido para a Travessa dos Narcisos, sento-me no chão e abro a caixa. A minha viola está sonolenta e eu penso que a música um dia pode acabar. Os músicos podem deixar de o ser e fazer outras coisas como, por exemplo, observar borboletas enquanto estas não se extinguirem. Donde veio esta certeza? Acho que foi no guichet, ao comprar o bilhete, a senhora que me atendeu muito vagarosa, muito ausente, não sabia do som das suas asas. Perguntei: o que fez a música por si? Ela permaneceu igual, eu afligi-me e saí a correr. Sentei-me no chão, abri a caixa da viola e olhei-a com vontade de a acordar. Quis abraçá-la apesar de saber que era uma tentativa desastrada. Olhei para o fim da linha e toquei um Sol.
Música: Stargazer – Siouxsie (The Rapture, 1995)